Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Foi apenas um sonho

É preciso ter força de caráter para viver a vida que se espera

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“É preciso ter força de caráter para se viver a vida que se sonha, Frank”, diz April. 

Ela discute com o marido sobre querer uma vida longe da mediocridade. Frank é vivido por Leonardo DiCaprio em um papel excelente, e April é vivida por Kate Winslet, cheia de vida e enigmática. Sou admiradora de seu trabalho por vê-la perfeitamente na personagem do filme “Foi Apenas um Sonho” (2008). É um dos filmes de que mais gosto e, volta e meia, paro para ver quando passa na TV.

Ilustração
Linoca Souza/Folhapress

Quem assistiu à obra pode relembrar sua beleza. O filme fala de um casal que se apaixona e tem grandes sonhos. Depois disso, estradas se bifurcam —de um lado, sonho e construção; de outro, a prisão à imagem e o incômodo em lidar com a luz alheia. 

Na personagem de Kate, a luz, a descoberta da própria verdade e os desafios que anseiam para ser vividos a movem para longe das pessoas manequins e das famílias modelos de sucesso. 

April enxerga a verdade e não consegue mais ignorá-la. Tenta se adequar às regras impostas à mulher. Ela tem dois filhos. Porém, infeliz, convence seu companheiro a se mudar para Paris e viver o inesperado. 

É só na verdade que ela se ilumina e é na busca em vivê-la que se dispõe a transcender comportamentos tão automatizados e mesquinhos. Ela também busca esse crescimento para seu companheiro, com quem imagina dividir a busca por uma vida autêntica. 

Frank experimenta a animação pela ideia de ir a Paris com a companheira e se aventurar em um roteiro de vida totalmente diferente do da norma.

Nesse momento, ele se gaba para os amigos idiotas do trabalho que detesta, fica todo cheio de si. Diz frases libertárias, juras de amor, sorri vencedor para os vizinhos. Mas então vem a incapacidade de transcender e de lidar com a felicidade e com o crescimento da chama da companheira. Aos poucos, de entusiasta, Frank se torna um sabotador que, diante da recusa em crescer, busca arrastar a companheira para a vida em que ela não se encaixava.

“Se ser louco significa viver a vida plenamente, não ligo que sejamos totalmente malucos. Você liga?”, pergunta April.

Além dos protagonistas, são vários os atores em bela atuação, a começar pelos vizinhos, que se toleram e buscam manter as convenções sociais e são profundamente infelizes —sobretudo a mulher, por ser imbecilizada, enquanto o homem também é um frustrado, mesmo estando no “domínio” do lar. 

Os vizinhos ficam recalcados com a decisão do casal em partir. Uma cena marcante é quando o casal confessa sua decisão de ir para Paris em um jantar, e os vizinhos não conseguem conter a revolta ante a novidade. 

Após o fim da noite, a vizinha se põe a chorar de raiva pela vida que leva. Outro de destaque é o filho da corretora de imóveis, que é tido como o louco. 

Partindo das impressões desse personagem é que April pergunta ao companheiro se ele se importava com o que as pessoas achavam. John, recém-saído do manicômio, era tido como “louco” ao disparar, sem dó nenhuma, verdades dilacerantes no ambiente repleto de hipocrisias. É com ele uma cena ápice do filme, quando atravessa o personagem Frank com tudo o que ele merecia ouvir, mas ninguém havia dito.

É claro que não é necessário se mudar para Paris para buscar sua verdade. O filme faz o retrato de uma situação específica, mas nos leva justamente a pensar sobre o quanto podemos nos autossabotar, nos diminuir para caber em determinadas expectativas, sobretudo quando a transcendência vai diretamente contra os anseios de um ambiente controlador. 

Já tentei me encaixar no mundo dos destinos e aparências, estive em diversas situações em que a mediocridade é o tempo todo incensada, e não soube dar nome àquele incômodo. 

É um processo duro recuperar ou construir uma autoestima para estar com consciência das situações ao redor, por mais que as opressões estruturais sejam um impeditivo para alterar a situação. 

Historicamente este país foi construído sobre lugares postos, inquestionados, e com raízes profundas em todos ambientes. 

Ter consciência, enxergar a verdade sobre as pessoas que ocupam esses lugares pode não alterá-los.

Enxergar quem está para te ver voar e quem está para te manter com asas amarradas pode, sim, nos pôr em processo de uma certa rebeldia, ainda que silenciosa, que aos poucos vai botando essas naturalizações das aparências em xeque. 

Desde que passei a tomar difíceis decisões rumo ao que sabia que deveria viver não busco mais me encaixar numa bela imagem e cumprir expectativas de terceiros. Não faltaram desestímulos, desafios desnecessários, boicotes. A vida na caixa sempre nos chama para lá ficar. 

Mas quando vejo a verdade, posso até não vivê-la, mas não consigo ignorá-la; ela canta nos meus ouvidos. Em busca dela, sigo meus passos conforme o que disse April: é preciso ter força de caráter para se viver a vida que se sonha.

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