Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Importunação desnecessária

A vida da mulher negra é perpassada por agressões reiteradas durante o dia

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“Quais são as palavras que você ainda não possui? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole diariamente e tenta tornar suas, até que você adoeça e morra delas, ainda em silêncio?

Talvez, para algumas de vocês aqui hoje, eu seja o rosto de um de seus medos. Porque eu sou uma mulher, porque sou Negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma —uma poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho— e estou aqui perguntando a você: você está fazendo o seu?”

Ilustração da Audre no centro com dois balões atrás dela, em um está escrito "Woman are powerful" e no outro "and dangerous". No fundo, há folhas de planta
Linoca Souza/Folhapress

Esse é um trecho precioso do texto “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação” de Audre Lorde. A escrita potente da feminista negra de origem caribenha, que marcou a geração crítica alemã ao desenvolver seu trabalho acadêmico em Berlim, dialoga com diversas mulheres negras brasileiras que ainda não formularam seus incômodos, deixaram de verbalizar o escândalo ante uma violência gratuita, uma importunação desnecessária. A vida e a história de uma mulher negra é perpassada por (às vezes nem tão) sutis agressões reiteradas durante o dia.

As agressões são as mais diversas. Desde ligar a televisão e ver a Suécia representada no monopólio da comunicação que não prevê nenhuma difusão de produção crítica negra para a massa da população (e por que será que isso acontece?), seja essa produção em forma de crítica jornalística ou mesmo artística em programas de auditório, o que for, às agressões no ambiente de trabalho, no ambiente escolar ou em qualquer ambiente de sociabilização de uma pessoa negra. 

No campo da política pública, as agressões passam pela precarização de vida causada por reformas de austeridade, como a reforma trabalhista e da Previdência, que aprofundam a desigualdade social no país, tornando a vida ainda mais cara e o dinheiro ainda mais curto.

Some a isso, inclusive, o fim de políticas públicas exitosas na área de educação, da saúde, da agricultura familiar. São medidas que fazem parte de uma política oficial atual que resulta na morte e precarização de pessoas da base da pirâmide e, por isso, parlamentares que a apoiam merecem o registro histórico para que respondam pelo que estão fazendo quando este país recuperar o mínimo de senso republicano.

Fato é que a vida das pessoas pertencentes a grupos sociais marginalizados tem deteriorado e as violências que sempre existiram, mas agora se aprofundam, resultam em engasgos no pescoço de pessoas negras que querem gritar, mas não encontram sua voz.

São dores que atravessam a população pobre deste país e que não são consideradas quando uma ou um parlamentar vai ao plenário promover propostas de precarização de vidas. Os males diários, reflexos da estrutura do racismo e do sexismo, trazem para a vida da população negra a potencialização do contato com violências que dificilmente são verbalizadas. 

Meu querido amigo Adilson Moreira, de doce, sagaz e profundo coração, foi ao cinema ver “Coringa”, filme que tem despertado uma série de comentários. Ao analisá-lo, Adilson produziu um primor de texto, em que avalia a produção social da loucura. Em dado momento, Adilson questiona: “Como pessoas negras podem ter um mínimo de segurança simbólica sendo vítimas cotidianas do humor racista, mecanismo que procura evitar que elas gozem de qualquer forma de respeitabilidade? Serão esses os motivos pelos quais jovens negros homossexuais sempre se mataram muito mais do que quaisquer outros grupos, situação que tem piorado ao longo dos últimos dois anos no Brasil e nos Estados Unidos? Quais são os limites da resiliência mental a práticas discriminatórias?”.

Relembro minha amada mãe, que morreu jovem, aos 51 anos, de um tumor que pesava quilos. No fim de sua vida, eram caroços espalhados pelo seu corpo, coisas que não havia dito, feridas que ao longo de sua vida não havia tratado. Meu pai morreu um ano depois, de tumor nos ossos que lhe causavam uma dor profunda. Essa foi uma fase que marcou minha vida, sobretudo pelas lições que tirei desse duro episódio.

Uma delas Audre Lorde em pessoa já havia dito nesse mesmo texto: o silêncio pode lhe esmagar. 

“Quando as palavras das mulheres clamam por serem ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de tirar essas palavras para fora, lê-las, compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência à vida”, conclui Lorde. Em um país que está tão desumano e violento quanto o nosso, que encontremos abrigos em suas palavras e ponhamos para fora toda revolta contra a tirania que somos forçadas a engolir.

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