Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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'Somos piores do que a Covid-19', escreve o pensador Ailton Krenak

A pandemia escancara ainda mais os abismos sociais

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Está disponível para download gratuito “O Amanhã Não Está à Venda”, do pensador Ailton Krenak, obra da Companhia das Letras que reúne suas recentes entrevistas sobre nossa realidade na era do coronavírus.

Ilustração de mulher negra sentada com os braços e a cabeça apoiados sobre os joelhos. Ela tem cabelos compridos e volumosos azuis e frutas estampadas pelo corpo
Linoca Souza/Folhapress

Krenak é uma voz fundamental —digo que é aquela que se tem que parar para ouvir e refletir.

Nesse momento da pandemia do coronavírus, suas contribuições trazem uma reflexão diferenciada que destoa da maior parte propagada nos diversos meios de comunicação. A partir de seu lugar social, traz os saberes ancestrais dos povos indígenas transmitidos em comunidade, saberes de resistência desses povos que têm sido perseguidos de forma desumana desde a chegada da “civilização”.

A leitura deste ensaio pode ser lenta, mesmo ele tendo cinco páginas, uma vez que o término dos trechos pode corresponder a muitos momentos de introspecção.

Para o povo krenak, não existe distinção entre o ser humano e natureza.

Tudo é natureza, é cosmos, e tratado como família. O rio Doce é reverenciado como o avô do povo que chora por seu assassinato. O rompimento das barragens não foi capaz de acordar as pessoas para a falácia do “progresso da civilização” traduzida em empresas de mercado cujo lucro advém da exploração de recursos naturais no país de herança colonial.

Se as privatizações no setor de exploração da natureza nas fronteiras do país foram, digamos assim, complexas em termos de patrimônio público e soberania, a exploração por essas iniciativas privadas resultaram em diversos episódios de assassinatos de rios enlameados, de solos contaminados, de montanhas cavadas, de mares entupidos com óleo —a lista é grande.

Isso acontece longe de regulação por governos, sobretudo os que se elegem em nome do discurso “de mercado”, ou seja, o discurso assassino dessa extensa família krenak, integrada na
natureza, como um só.

Afirma Krenak: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”.

Desde o início da pandemia, temos visto entrevistas de alguns empresários, economistas e governantes desesperados pela “renormalização”, já que tudo estava ótimo para eles antes de esse vírus interromper suas atividades —carreatas de carros buzinando e pedindo a volta das pessoas a tudo como antes.

Só que a manutenção da normalidade é como o sistema fundado nas opressões se mantém historicamente, sobretudo no Brasil, o último país do Ocidente a abolir a escravidão, “porque era ruim para o mercado”, e cuja classe dominante odeia o próprio país e se beneficia dos maiores índices de desigualdade do mundo.

A pandemia escancara ainda mais os abismos sociais, a ausência e a ilegalidade do Estado no que se refere a políticas públicas para as populações mais empobrecidas. Apesar disso, há os que pedem a volta da normalidade. Porém precisamos questionar o que havia antes e mesmo se isso é possível.

Sobre a normalidade, afirma Krenak: “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso tudo, as pessoas não vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas de colegas num espaço pequeno de trabalho. As mudanças já estão em gestação. Não faz sentido que, para trabalhar, uma mulher tenha de deixar os seus filhos com outra pessoa. Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo”.

Seja como for, para Krenak, uma coisa é certa, a natureza segue: “Esse vírus está discriminando a humanidade.

Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise. É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da terra.

Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na
biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos
piores do que a Covid-19”.

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