Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Carta póstuma a João Pedro, mais um jovem negro assassinado brutalmente

Quando estufam o peito 'em defesa da família', de que família estão falando? Ou melhor: de que família não estão falando?

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Uma morte horrorosa, como tantas que acontecem sob omissão. Um assassinato brutal que devasta uma família e segue à risca a lógica genocida desse país com a população negra.

Uma mãe não deveria enterrar seu filho dessa maneira. Mas como não fazer isso, João Pedro? Como não fazer quando o vivemos sob o sistema racista?

Ilustração mostra adulto negro, sem rosto, com roupa mostarda, segurando criança negra, com camiseta rosa, também sem rosto, mas sua silhueta lembra a do menino João Pedro, assassinado em operação policial. Ao seu redor, vários alvos.
Linoca Souza/Folhapress

É preciso falar do adoecimento psíquico causado por essas mortes. É preciso ampliar o espectro do que entendemos ser violência contra a mulher, pois mães que perdem seus filhos assassinados também estão sendo violentadas.

Famílias são destruídas e depois as pessoas usam termos como “famílias desestruturadas”, não responsabilizando o Estado. Quando estufam o peito “em defesa da família”, de que família estão falando? Ou melhor: de que família não estão falando?

Vi seu pai dizer que seu sonho era ser advogado. Sustentar no tribunal do júri, absolver um réu acusado injustamente, como existem tantos por aí. Defender direitos. Sabe, João Pedro, sua morte deu início a uma série de reportagens na mídia, algumas delas enfatizavam que você era “inocente”. Veja, tenho certeza que era, mas qual o sentido de enfatizar isso? Então, se não fosse, era aceitável metralhar a esmo a residência?

Quando assim dizem de um jovem cujo sonho era ser um advogado, penso no defensor classificando essas reportagens de “enojantes”, pois é o que elas são nas sutilezas das linguagens, no que visam
endossar.

É triste ver uma família ter de justificar quem o filho era, como se para poupá-lo de uma segunda morte —de sua dignidade.

É revoltante a linguagem empregada para falar da população negra.

Aliás, o que é ser “inocente”? A branquitude colonial no Brasil pode se dizer inocente? Após saquear, açoitar, viver sob uma desigualdade escabrosa, apoiando retrocesso após retrocesso, pactuando entre si para sufocar o acesso a todas as oportunidades possíveis?

Quem dorme em berço esplêndido no país das capitanias hereditárias, onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, quem fecha os olhos às marchas reacionárias postas nessa nação sobre o cemitério indígena e negro a céu aberto que é esse país, que se cale.

Que nenhuma mãe tenha de chorar a morte assassinada, fora de época, fora de propósito, chancelada por uma política genocida e justificada pelos jornalistas no afã da naturalização do grotesco, do
morticínio neste país.

Lembro-me de Marielle Franco, quem você encontra no plano ancestral. Após uma vida dedicada à população oprimida nas comunidades da capital fluminense, a reportagem de jornal que supostamente engrandecia sua trajetória terminava com o anúncio de que, em razão de sua morte, haveria mais intervenção militar, algo contra o qual ela lutou bravamente.

No seu caso, as reportagens se encerram com uma fixação patológica na afirmação de que o erro na operação decorre da morte de um inocente, uma criança em sua casa brincando, quando a palavra inocência, na boca de um apresentador branco de uma emissora do monopólio soa cínica demais em momentos trágicos como esse. Não cansam de debochar e reafirmar a supremacia branca neste país.

Em algumas reportagens, li que você era um garoto alegre, vi fotos suas “tirando onda” nas redes sociais. Você poderia ser meu filho. Minha filha, que tem 15 anos, me escreveu indignada sobre o seu assassinato. Ela disse: “Mãe, não temos um minuto de paz neste país”. E choramos.

É difícil, muito difícil viver sob condições tão aviltantes, mas cabe a nós continuar a caminhada por você, por Ágatha, por Amarildo, por Cláudia, por tantas pessoas nas periferias do país que têm suas vidas ceifadas como se descartáveis fossem e que somente não são por inspirarem o andar daqueles e daquelas que se propõem a continuar a luta necessária pelo povo castigado no país, rumo ao horizonte onde possamos existir com dignidade. Sabemos o quanto isso está longe de ser realidade e o quanto as barreiras do sistema colonial se erguem para obstar nosso avanço, mas somos muitos.

Como afirma Denisa Ferreira da Silva, o assassinato de jovens negros deveria criar uma crise ética na nossa sociedade. Pois já que eles não têm consciência e humanidade, que a crise seja posta na mesa por aqueles e aquelas que choram sua morte. Na tradição que sigo, enquanto a pessoa for lembrada e honrada, ela está presente, torna-se uma ancestral imortalizada. E assim será.

Não conheço sua família para além do que vi nos jornais e dedico a ela meus sentimentos mais profundos. Não será em vão.

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