Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Cotas fizeram borbulhar demanda sufocada dos negros e pobres

Acessar ensino de qualidade significou para muitos a quebra de precarização e sabemos o quanto isso incomodou

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Fui uma adolescente negra nos anos 1990. Uma pessoa branca do Sul, Sudeste, que fez boas escolas, se alimentou bem, cursou idiomas, viajou a lazer para fora de seu estado nunca vai saber a desesperança que habitava o coração das pessoas negras nessa época, sob a certeza de que não fariam curso superior.

Em universidade pública, então, esquece. As poucas que havia tinham em seu seio a bandeira da hegemonia branca fincada.

Era o auge de um governo que conseguiu a enorme proeza de, em oito anos, não criar uma única universidade pública. Era a ideologia de um governo que vetou no ensino público as aulas de filosofia e sociologia, uma vez que não eram necessárias para “as massas”. Diletar não é o lugar natural nem apropriado, para filhos e filhas de populares.

Ilustração de megafone de onde saem vários livros e as palavras "PARA TODOS"
Ilustração - Linoca Souza

Vieram os governos Lula e Dilma. Com todas as críticas e limites de projetos implementados, as políticas de educação foram importantes. A adoção das cotas raciais, sob a grita dos que gozaram da desigualdade em oportunidades, a criação de centenas de universidades e institutos federais em todo o país, o acesso de pessoas pobres e negras a universidades particulares pelo Prouni, entre outras medidas, fizeram borbulhar a demanda sufocada de negros e pobres por educação.

Acessar o ensino de qualidade significou para muitas famílias a quebra de precarização. Sabemos o quanto isso incomodou.

Eu, por exemplo, sou filha, neta e bisneta de empregadas domésticas. Nas gerações anteriores, descendo de mulheres escravizadas. Quebrei o destino que me foi posto ao acessar a universidade pública, a Universidade Federal de São Paulo, campus dos Pimentas, na periferia de Guarulhos, cidade metropolitana. Uma universidade criada pelo governo Lula.

Vivi de perto a briga para manter a universidade onde está, contra todos os que se indignavam em ter de ministrar aulas num bairro de populares. Graduei-me e defendi meu mestrado em filosofia política, o que me possibilitou aquilo que as pessoas negras tanto buscam: oportunidades.

Por mais que tenha críticas e as tenho a esses governos, não há como negar que, ao adotar reivindicações históricas do movimento negro para a educação superior, foram oportunizados avanços e transformações sociais que estão postas.

As mudanças nos lugares sociais de onde provêm as pessoas dessa geração produzem uma diversidade no olhar e no gozo de riquezas que certamente conflitam com o histórico escravagista deste país.
Mas por que digo tudo isso?

Bom, pois no atual governo as políticas de educação estão em desmonte, e a ciência brasileira sob intenso ataque, o que apenas aumentou ante a pandemia do coronavírus. Uma imensa crueldade e covardia.

Vale dizer que a comunidade acadêmica e científica sofre com cortes severos e sucessivos de bolsas para doutorandos, mestrandos e pesquisadores que dependem do valor —baixo, por sinal— para continuar a desenvolver ciência e filosofia no país, seja em campos de humanidades, exatas ou biológicas.

Em setembro, foram mais de 5.000, já em março recente mais bolsas foram cortadas. Após os cortes, a Capes, órgão responsável por esse financiamento, divulgou sem diálogo uma nova portaria com “mudanças de critérios” para as pesquisas.

Nas universidades federais, ora os repasses do Ministério da Educação são cancelados ora são congelados, impossibilitando uma gestão preocupada com o desenvolvimento científico da comunidade.
Contratações previstas têm de ser canceladas e cargos de professores, professoras, servidores e servidoras ficam vagos.

Cenários infames são gerados, como corte de luz por impossibilidade de pagamento de conta, além de demissões em massa, trazendo todos os males do desemprego para a comunidade do entorno, além de resultar numa universidade despreparada para receber estudantes.

Falando em estudantes, o Ministério da Educação abriu inscrições online para o Enem num país com mais de 6 milhões de pessoas sem acesso à internet e, portanto, sem acesso tanto ao exame quanto ao ensino preparatório.

Trata-se de mais uma medida de uma ideologia que visa justamente remontar às desigualdades seculares deste país. Um projeto que está em curso e não vai parar, ainda mais em razão de uma “gripezinha”.

Nada parece parar o projeto político que busca remontar uma versão piorada da vivida por adolescentes negros nos anos 1990. De parte das pessoas que buscam um país melhor, que saibamos nomear as políticas que promoveram avanços sociais e nos apeguemos à ciência como uma luz contra o obscurantismo de um governo inimigo da educação, do povo, do Brasil.

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