Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Diante de tantas desgraças no nosso país, quero poder falar de esperança

Já nos ensinou Audre Lorde que o autocuidado é revolucionário

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Diante de tantas desgraças pelas quais passa o país, hoje quero poder falar de esperança. Sim, eu sei, parece difícil quando temos tantas mortes, descaso e estamos sendo governados por um homem completamente inconsequente. Mas é preciso. Já nos ensinou Audre Lorde que o autocuidado é revolucionário e buscar algo que nos eleve a alma é antídoto contra a dor.

Ilustração de duas mãos negras envolvendo uma planta pequena sem encostar nela. Há mais plantas e formas abstratas no fundo
Linoca Souza/Folhapress

Passei a ler e ouvir músicas que me tocam. Quando Milton Nascimento canta “brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar/ porque não sabem que o mar é de quem o sabe amar”, nos dá dimensão do mundo mesquinho em que vivemos ao mesmo tempo que nos ensina sobre a imensidão do amor.

Além disso, debocha dessa mania de grandeza do homem, a vaidade cega das posses, a recusa em enxergar seu tamanho e finitude. Devo ter escutado essa canção todos os dias, pois ela suspende a realidade por alguns minutos.

Imagino que quem está vendo redes sociais a todo momento, acompanhando o último “urgente” do dia, pode se esquecer de desligar o aparelho e apreciar o que nos põe em dimensão no planeta. A falta de conhecimento de si é um grande problema que vivemos enquanto sociedade que, ao mesmo tempo em que se pensa conectada, está mais desconectada do que nunca. O Sol, o céu, a Lua, somos cercados por poderosas forças para contemplarmos e mergulharmos em nós mesmos para conhecermos o fundo de nosso próprio mar.

Li “Amada”, de Toni Morrison, e me fortaleci ao ler este trecho: “Aqui neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele das suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem. Levantem e beijem suas mãos. Toquem outros com elas, toquem uma na outra, esfreguem no rosto, porque eles não amam isso também. Vocês têm de amar vocês! E não, eles não amam a sua boca. Lá, lá fora, eles vão cuidar de quebrar sua boca e quebrar de novo. O que sai de sua boca eles não vão ouvir. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços fortes, estou dizendo. E, ah, meu povo, lá fora, escutem bem, não amam o seu pescoço sem laço e ereto. Então amem seu pescoço, ponham a mão nele, agradem, alisem e endireitem bem. E todas as suas partes de dentro que eles são capazes de jogar aos porcos, vocês têm de amar. O fígado escuro, amem, amem o bater do batente coração, amem também. Mais que olhos e pés. Mais que os pulmões que ainda vão ter de respirar ar livre. Mais que seu útero guardador da vida e suas partes doadoras de vida, me escutem bem, amem seu coração. Porque esse é seu prêmio”.

Amar essa carne vista como indesejada e descartável como forma de incomodar seus inimigos. Eles devem se perguntar por que ainda resistem em um mundo que insiste em destruí-los. “Vocês têm de amar vocês!” O quanto de poder contém essa afirmação. Pode parecer bobo para alguns ou coisa de autoajuda, mas só quem precisou encontrar luz num mundo escuro sabe a potência que essa frase carrega.

Para quem pode, é preciso criar pequenos oásis nos desertos da alma. Arriscar-se em escrever um texto, derramar aquilo que está guardado no peito, pôr um pouco de si num pedaço de papel, numa tela de celular. Ler tempos depois, conversar consigo mesmo. Silenciar-se. Apreciar o Sol, saber sentir saudade do mar sem apego, pois “o mar é das gaivotas”. Cultivar. Olhar para dentro. Tomar coragem e criar estratégias para enfrentar aquilo que aprisiona, a injustiça que visa apequenar. Não há a mínima possibilidade de voltar ao normal; era justamente contra essa normalidade com cheiro de morte e descaso que muitos dedicaram a vida a lutar contra. Não sei para onde esse mundo vai, até lá tento criar “O Paraíso Sobre os Telhados”, poema de Cesare Pavese.

“Não será necessário deixar a cama/ só a aurora entrará nesse quarto vago./ Bastará a janela a vestir cada coisa/ de clareza tranquila, quase uma luz./ Pousará uma sombra no rosto supino./ As lembranças serão uns punhados de sombra/ consumidos, assim como velhas brasas/ na lareira. A lembrança será a chama/ que ainda ontem mordia nos olhos baços.”

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