Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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O Brasil é, sem dúvida, um país de realeza negra, é preciso romper com a ilusão

São lavadeiras, empregadas e quituteiras que fizeram contas que economistas de jornal seriam incapazes de fazer

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São tantas as grandes mulheres negras que constroem este país sem que a maioria da população as conheça. Mulheres que enfrentaram séries de dificuldades e simplesmente foram postas no lugar de “resilientes”.

Quem são os indivíduos por trás de construções sociais impostas? Pois sabemos que é necessário romper com a ilusão que tenta nos forjar. Sem dúvidas, este país é de realeza negra. Aquela que descende de Luisa Mahin, de Luís Gama, André Rebouças, de Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Luiza Bairros e tantas, tantas, tantas outras.

ilustração Aline Souza para a Coluna de Djamila Ribeiro, uma mulher negra,
Linoca Souza/Folhapress

Somos da dinastia das lavadeiras, das empregadas, das quituteiras, que brilhantemente fizeram matemáticas que nenhum economista de jornal seria capaz de fazer e trilharam caminhos de glória para o povo que segue resistindo no país das capitanias hereditárias e que, por ainda resistir, já merece todas as nossas reverências e homenagens.

Hoje, conto a história de uma grande rainha que se juntou aos ancestrais nesta semana.

Efigênia Clara de Souza Moreira nasceu em Belo Horizonte no dia 12 de agosto de 1932, uma sexta-feira. Nasceu, cresceu e morreu na periferia da capital mineira, porém sua trajetória e frutos se espalharam pelo país e pelo mundo. Como é realidade para muitas pessoas negras, Efigênia, brilhante aluna, estudou até o terceiro ano primário, mas teve de abandonar a escola para contribuir com a família.

Trabalhou como doméstica até o casamento com Alcides Cipriano Moreira, também muito inteligente, mas que não teve oportunidades para concluir os estudos.

Tiveram dez filhos: Heloisa, Maria, Silvia, Isabela, Edmilson, Adilson, Nilson, Denilson, Valéria, Aline. Os pais, que não tiveram oportunidades educacionais, fizeram uma promessa de que os seus filhos teriam.

E assim foi: seus dez filhos têm educação superior, oito deles pela Universidade Federal de Minas Gerais. Hoje, atuam como arquitetas, historiadora, advogados, designers, bibliotecárias, administradora, dentista, engenheiro. Atualmente, a família Moreira está na terceira geração com doutoramento também na UFMG.

Ela criou os filhos trabalhando como costureira e como lavadeira, além dos afazeres de dona de casa. Ia para a fila de madrugada para conseguir vagas para os filhos nas melhores escolas públicas de Belo Horizonte. Dona Efigênia fez o impossível nesse país injusto e racista que possui todas as barreiras imagináveis para que uma pessoa negra não alcance oportunidades de estudos de elite, quanto mais dez crianças negras.

Gostava de uma boa festa, dos filhos reunidos. Cobrava ligações e presentes daqueles que viajavam e passavam temporadas fora em estudos.

É o caso de Adilson Moreira, um querido amigo e brilhante intelectual brasileiro, formado e mestre em direito e em psicologia pela UFMG, além de mestre e doutor pela Universidade Harvard, autor de uma série de livros fundamentais para a compreensão crítica do racismo brasileiro, como “Racismo Recreativo”, “Tratado de Direito Antidiscriminatório”, entre tantos outros. Adilson, uma das tantas pérolas de dona Efigênia.

“Meus pais eram pessoas muito inteligentes, que poderiam ter tido carreiras profissionais muito bem-sucedidas se tivessem as oportunidades certas”, afirma Adilson, com quem conversei durante a semana.

Uma mulher com a história e o trabalho de Efigênia nos leva a refletir sobre onde pessoas negras estariam se tivessem oportunidades. Sim, a história dessa grande mulher foi de luta, mas é necessário dizer o quanto também é uma história de negligência e omissão do Estado.

Valorizamos a trajetória, lembrando que não é para romantizar o sofrimento, mas sim para revelar as habilidades de resistência de mulheres como dona Efigênia que transformaram os restos menos nobres do porco em feijoada. Daquelas que souberam dançar a capoeira sabendo que se tratava de luta.

Nascida nesse cenário desafiador, com a habilidade de caçadora, dona Efigênia fez daquilo que a estrutura fez dela a flecha de sua própria revolução: a instrução formal e material dos filhos, conscientes de seus lugares na sociedade, a partir de suas lições.

Escreveu diários por toda a vida, sempre se mantendo otimista sobre o futuro dos filhos. “Ela sempre nos dizia para nos mantermos fortes e de cabeça erguida; para não nos esquecermos que ela sempre estaria presente para nos dar todo o suporte moral possível”, conta Adilson.

Nessa semana, aos 87 anos, dona Efigênia foi ao encontro de seus ancestrais, que, em festa, a receberam. Seu legado já é eterno e a nós cabe agradecer, contar suas histórias e mantê-la viva nos exemplos que deixou.

Obrigada, dona Efigênia.

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