Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Beyoncé acerta ao proporcionar onda de debates, com 'Black Is King'

Há muitas considerações que devemos fazer sobre o artigo polêmico de Lilia Schwarcz, que fez críticas à cantora

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Eu não sou fã de Beyoncé, apesar de respeitar tudo o que ela representa. Ouço músicas em festas, mas realmente não é uma artista que me emociona. Mesmo assim, por várias vezes, me vi envolvida em discussões em que a defendi.

Não é uma questão do que eu gosto ou deixo de gostar, é uma questão de honestidade no debate.

Lembro que, há alguns anos, um chargista fez uma arte com os dizeres: “Mais Angela Davis e menos Beyoncé”. É uma comparação tão esdrúxula que a única resposta possível foi: “Mais Rosa Luxemburgo e menos Madonna”. Bom, essa comparação não é feita, o que seria absurdo também, mas
às pessoas brancas não é negado o direito à humanidade.

Em relação ao artigo de Lilia Schwarcz, publicado na Folha sobre o álbum “Black Is King”, sob o título “Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha”, há muitas considerações a se fazer.

Primeiro, pelo título um tanto ofensivo reduzindo todo um trabalho à “estampa de oncinha”, como se desse a entender que a cantora é simplista. Tal opção do próprio caderno desta Folha foi uma escolha de título infeliz que decorreu da utilização pela autora da “estampa de oncinha” no corpo do texto, em um contexto pouco mais abrangente, embora ainda irrelevante.

Quanto à linha-fina —“diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”—, há o emprego da ordem “precisa entender”, sendo que as pessoas negras historicamente “precisaram entender”. Soa um tanto ou quanto colonial. A linha-fina ainda traz a mensagem desrespeitosa ao determinar como se faz a luta antirracista.

Escolhas da edição de títulos e linhas-finas acontecem com todos os autores —comigo, por exemplo— e podemos discordar. Trata-se, contudo, de uma questão não contemplada no “debate de internet”, marcado em parte pelo seu baixo nível com deboches e ataques pessoais.

Segundo, pelo texto em si, de responsabilidade da autora. Gostaria de frisar que respeito o trabalho e a pessoa de Lilia, considerei importante a retratação e disse isso publicamente, apesar dos usos desonestos que fizeram disso.

Em um mundo marcado por violências históricas com pessoas negras, não há problema em criar imagens positivas. Como disse a artista visual Renata Felinto, arte é sobre imaginação e “Beyoncé é uma artista amadurecendo como pessoa, mulher, mãe”.

Logo, não há nada de errado em criar imagens poderosas, que nos façam, inclusive, sublimar a dor. E, sim, muitos jovens se identificam com essas imagens, presumir que não é somente uma questão de opinião.

Beyoncé saiu da sala de jantar para pensar com diversos artistas uma criação potente. Inclusive, é um tanto problemático dizer a uma mulher negra que ela precisa sair da sala de jantar. Porque, historicamente, mulheres do grupo ao qual Beyoncé pertence nunca puderam sair desse lugar, desde as escravizadas até as milhões de empregadas domésticas que são forçadas a servir à branquitude. Não é o caso da artista, uma mulher rica e mundialmente conhecida, mas é o caso da maioria do grupo do qual ela parte, de parte de um grupo que se sente representado por ela.

E aí se aplica a discussão sobre lugar de fala. Porque, de seu lugar social, Lilia não conseguiu enxergar essas experiências que são centrais na vida das mulheres negras. Isso quer dizer que Beyoncé não pode ser criticada? Óbvio que não, mas é necessário compreender o lugar do qual se parte para fazer uma crítica verdadeiramente honesta.

Entendendo lugar de fala como lugar social, li artigos de estudiosas africanas sobre o clipe, como as críticas apresentadas pela nigeriana Boluwatife Akinro, mestranda em estudos americanos na Universidade de Padeborn, na Alemanha. Ela escreveu um artigo intitulado “Beyonce and the heart of darkness” em que refuta o que chama de “americacentrismo em relação à África” sobre o filme “O Rei Leão”.

Já Judicaelle Irakoze, afro-feminista nascida em Burundi, no seu artigo “Por que devemos ter cuidado ao assistir ‘Black Is King’ de Beyoncé”, por mais fã da cantora que seja, faz um questionamento: “É possível imaginar que os humanos africanos são dignos se não forem reis e rainhas, envoltos em ouro e diamantes? Estamos dizendo que nossos ancestrais não deveriam ter sido escravizados porque eram reis e rainhas e não simplesmente porque eram humanos?”.

E acho fundamental visibilizar essas vozes, por mais que entenda nossa necessidade como diáspora em recriar certas narrativas. Penso que teria sido muito mais importante trazer essas críticas pertinentes ao debate do que falar a partir de um lugar que soa arrogante, uma vez que, apesar de todo o incômodo com Beyoncé, ela merece uma crítica que faça jus ao seu tamanho.

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