Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Descriminalizar aborto é desafiar privilégios concedidos aos homens

Mentalidade dos que se mostram indignados com a prática pode ser observada historicamente no país

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Junto a muitas companheiras, acompanhei chocada o caso do aborto legal de uma criança de dez anos estuprada durante boa parte da vida. Era inacreditável que havia pessoas chamando uma criança alvo de violência inominável de “assassina” na porta de um hospital.

Também era inacreditável que uma mulher —com histórico de crimes virtuais e ameaças— tenha divulgado dados pessoais da criança, que ela jamais poderia ter em mãos, levando-nos a questionar, inclusive, o papel do governo nesse atentado perpetrado. Essa mesma mulher já foi convidada pela ministra de Direitos Humanos para assumir a coordenação nacional de políticas da maternidade do ministério. Vejam só como as aves da mesma plumagem voam juntas.

Ilustração mostra menina de costas segurando um urso de pelúcia
Linoca Souza

O resultado de tamanha desonestidade foi a extensão da violência contra a criança, como também uma violência cometida contra todas as mulheres, sobretudo as que sofreram abuso sexual e gravidez precoce decorrente do estupro. Não são poucas, pelo contrário.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país. Já segundo o SUS, há, em média, ao menos seis abortos por dia em meninas de dez a 14 anos. Sessenta e seis por cento dessas jovens são negras.

O aborto é uma questão de saúde pública, já que várias pesquisas apontam que morrem milhares de mulheres no Brasil todos os anos por causa de procedimentos inseguros. Essas mulheres, em sua maioria, são negras e pobres, uma vez que quem possui uma condição econômica privilegiada paga por clínicas particulares. A visão que impõe uma moral e desconsidera a realidade do país só contribui para mais mortes.

Descriminalizar o aborto é desafiar privilégios concedidos aos homens pelo patriarcado, sistema que funciona para a permanência da subalternidade imposta às mulheres. Por isso, o discurso misógino, que permeia as instituições públicas, privadas e religiosas deste país, a admissão e condescendência com o estupro em oposição à absoluta vedação da morte, mesmo que a delirante “morte de um embrião”, o qual tem mais valor do que a temida liberdade de uma mulher.

No caso, é mais absurdo, pois se trata de uma criança vulnerável, estuprada em parte considerável de sua infância.

A mentalidade dos que se mostram indignados com o aborto, mas passam a vida humilhando mulheres e crianças, ao naturalizarem violências cometidas, pode ser observada historicamente no país, como quando Paulo Maluf orientou outro homem com a frase “estupra, mas não mata”, ou ainda o então deputado Jair Bolsonaro se dirigiu à deputada Maria do Rosário dizendo “não te estupro, porque você não merece”.

Quem sabe se toda a indignação da CNBB e de outros moralistas contra o aborto de uma criança engravidada for a mesma em relação à pedofilia na Igreja a história não muda...

Chocou-me também ver que o assunto era o mais comentado no Twitter, que mesclava os termos “estupro”, o nome da criminosa divulgadora e “aborto”, em meio a propagandas de séries de TV e conteúdo patrocinado.

Friso: estamos falando de uma mulher com histórico de disseminar fake news nas redes, então como poderia ser usuária? Não só era como também, após cometer o crime de divulgar as informações da menina e incitar o ódio, estava na sua conta no YouTube fazendo uma live para milhares de pessoas. Precisou a Justiça determinar a retirada dos perfis dessa usuária para essas empresas agirem. A falta de regulação e a autodesresponsabilização das plataformas produzem danos graves.

Agora, o que Facebook, Twitter e YouTube vão fazer com o dinheiro que lucraram em anunciantes durante o fim de semana em que exploraram a “polêmica” consistente na divulgação criminosa de uma criança violentada? Quanto será destinado à família? Se um jornal divulgasse as informações da criança, certamente seria responsabilizado. Agora, por serem empresas de redes sociais, nada é feito? Precisamos pôr o dedo nessa ferida: as redes sociais estão lucrando com o ódio, com o racismo, a misoginia. Lucram, e muito, com a dor do outro.

Essa realidade é absurda e demonstra a necessidade de rediscutirmos essas redes enquanto empresas bilionárias se isentam da responsabilidade. Quando o Marco Civil da Internet foi concebido, em 2014, a máquina de ódio e fake news que decide eleições, enriquece plataformas e destrói vidas não estava tal como hoje, quando o descontrole pelo Estado diante dessas empresas —que se apresentam como “modernas”, mas representam púlpitos do ódio colonial— chegou a níveis insustentáveis de desregulação e violência.

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