Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

É hora de resistir, ao mesmo tempo em que é hora de se despedir

Em meio à triste marca de 100 mil mortos pela Covid-19, há a constatação de que o vírus vai se espalhar mais pelo país

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Em meio à triste marca de 100 mil mortos pela Covid-19, além da falta de perspectiva política, há a constatação de que o vírus vai se espalhar mais pelo país.

Caem nossas avós, mães, irmãs, até nossas filhas. Nossos irmãos. Um vírus que retira o fôlego, o sopro e se fortalece no enfraquecimento das políticas públicas, na presença de Estado nos espaços periféricos carregado só por armamentos, nas políticas de austeridade que empobrecem um povo já tão pobre. Sabemos bem qual grupo social essa pandemia mais atinge.

Para o povo negro, contudo, o país historicamente foi trágico. Luta, resistência e fé são legados de nossos ancestrais e com seus ensinamentos seguiremos. É hora de resistir, ao mesmo tempo em que é hora de se despedir.

Ilustração de Linoca Souza
Linoca Souza

Sou uma mulher de candomblé, parto de outra visão de vida, outra visão de morte. Os ritos de passagem à massa ancestral são diferentes do costume ocidental. Não se veste preto, mas branco. As palavras de saudade dão espaço ao axexê, no qual se cumprem os ritos para a boa passagem, e por dias contamos histórias e imortalizamos a pessoa querida que nos deixou.

Ela vive porque vivemos com ela em nossos corações. Não há espaço para a cena fúnebre de todos cabisbaixos, como se a morte fosse a pior notícia. Histórias se contam em rodas e são de todos os gostos, muitas delas até engraçadas. Romance, superação, drama e comédia. Comida, dança, canto e despedida. Fé.

Nesta coluna, peço licença aos ancestrais para celebrarmos um axexê literário para Maria Aparecida Eugênio, a Pipo. Nasceu em São Paulo, em 14 de outubro de 1952. Família preta, grande, oito irmãos. Com as três irmãs morou por boa parte da vida. Herdou da mãe o nome, a profissão de doméstica e foi uma exímia cozinheira. Testemunhas do talento não faltam, sobretudo dos que iam às festas no terreiro.

Como muitas negras, Pipo viveu um projeto de vida com um objetivo: fazer os filhos darem certo, proporcionar a eles escolhas, o que não tiveram ao terem para si determinado o destino do emprego doméstico. Pipo fez de tudo, mesmo, para realizar esse objetivo aos seus amados Rodney, Andresa e Juliana.

Seu primeiro marido, Francisco Carlos Eugenio, pai de seus filhos, morreu aos 31, afogado na represa de Mairiporã. E foi com Nelson Schiavinato, descendente de italianos, que viveu o grande amor. Trabalhador ao extremo, só não cuidou dela estendendo um tapete vermelho até os últimos dias, como fez desde o início dos anos 1990, por também estar internado por Covid.

Tenho uma ligação especial com o primogênito de Pipo. Rodney William Eugenio é doutor em ciências sociais pela PUC-SP, autor de livros traduzidos e pai de muitas cabeças. É meu pai, sacerdote que com 16 búzios enxugou lágrimas, confortou aflições e levantou queixos. Transformou e segue a transformar vidas pelo exemplo, pela palavra e pelo amor. À coluna, ele lembra as superações da mãe.

“Ela tinha consciência do lugar dela no mundo, enquanto mulher sem muitas oportunidades, mas que fez de tudo, mas de tudo mesmo, para que nós, os filhos, conseguíssemos estudar, um esforço sobre-humano: às vezes até deixando de comer para que a gente pudesse ter o que comer. Tinha uma coisa que ela fazia com muita frequência que era não comer no serviço para fazer uma mistura para quando eu passasse para ir para a PUC —ela trabalhava numa casa em Perdizes. Eu passava lá antes para pegar a marmita para não ficar sem me alimentar.”

São histórias, que se misturam com o drama pela falta material de levar comida à mesa dos filhos, com a comédia criativa que as mulheres negras desenvolveram ao longo da vida, levada como uma grande capoeira, em que senhores não sabiam se era dança ou luta.

“A Pipo tinha umas técnicas de cozinha muito interessantes: ela tinha uma coisa de ‘fazer o bolo dar errado’ que era para ‘jogar fora’, mas que era para trazer para casa. Então ela sempre fazia um bolo no serviço e o primeiro sempre dava errado e aí era esse bolo que ela trazia para a gente comer em casa. Então era dessas coisas, dos truques de cozinha simples que ela usava para trazer um pouquinho de comida que sobrava.”

Devota de Omulu, era a primeira a separar o dinheiro para a festa do orixá, sempre em agosto, mês que ela sabia que as coisas complicavam um pouco. Neste mês, com o qual tinha profunda ligação, morreu, no dia 5. Desde que a conheci, há sete anos, sempre me encantou sua beleza. Pipo foi uma mulher linda e elegante, até no hospital foi com seus turbantes. Viveu em Oxum e Iansã, orixás mães que “queimam o bolo” e deixam de comer para seus filhos lutarem pelos sonhos e oportunidades. Deixa saudades, lições, história e um imenso legado. Obrigada, Pipo.

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