Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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É preciso ir além do repúdio moral ao estupro ou ficaremos reféns da gritaria

Abordar o tema é importante, mas muitas vezes após o textão vem uma selfie e se esquece do assunto

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No empenho de causar espanto, por vezes são criadas expressões de impacto. Contudo, temos que ter cuidado. No caso da decisão judicial sobre a violência sexual em uma boate de luxo de Florianópolis, tomou conta das redes sociais a expressão "estupro culposo".

Em que pese a argumentação do promotor ter ido nesse sentido, me preocupa a fixação no repúdio moral e não a reflexão profunda sobre o assunto. A expressão, interpretação do veículo que a divulgou, exige ressalvas, pois a exploração, muitas vezes em busca de meras curtidas, pode esvaziar o debate de sentido político.

Ora, estupro é estupro, mas e aí? A cada oito minutos uma mulher é estuprada no país. Nas minhas últimas colunas nesta Folha, inúmeros casos.

Ilustração de Linoca Souza para coluna de Djamila Ribeiro de  6.nov.2020.
Linoca Souza

Onde estão as políticas públicas? Quais as responsabilidades dos governos federal, estadual e municipal nessa realidade de morticínio e violação sistemática de mulheres?

Quais foram os desmontes nas equipes integradas de atendimento a vítimas de violência doméstica e crimes contra a mulher nos últimos anos, e por que isso não é assunto?

Por que foi possível que quatro homens protagonizassem uma audiência degradante com humilhação, desrespeito e violência contra a vítima, que foi exposta a comentários absurdos e julgamentos infames?

Audiência na qual foi justificada a violação de seu corpo pela exibição de fotos em redes sociais, como se autorizasse ou explicasse o estupro, e na qual foram dirigidas palavras de desprezo e misoginia.

É questionar o CNJ sobre procedimentos junto às vítimas e colheita de testemunhos sem acompanhamento especializado. Questionar a formação de agentes de Justiça.

A audiência, com o advogado do réu, o defensor da vítima, o promotor e o juiz foi um espetáculo machista inserido na lógica da cultura do estupro. Sobre ela e suas implicações devemos nos atentar.

Trazer uma compreensão dos fatos que, quando tornados públicos, honram o trabalho da mídia, sem precisar do apelo de uma expressão, não significa deixar de fazer a crítica; pelo contrário —mas refletir: quais são as críticas? Senão, é só gritaria, tuítes e posts de Instagram numa onda de mero repúdio moral ao estupro, fenômeno semelhante a postar uma tela preta na morte de George Floyd.

Várias telas rosas e pouca preocupação com a vítima de fato. Como escreveu Isabela de Monde, cofundadora da Rede Feministas de Juristas: "Essa história tem um centro, a Mari Ferrer. Não nos esqueçamos jamais que ela não é um número, ela não é uma personagem de entrevista e matérias, ela não é objeto de estudo e opinião".

Importante abordar o tema, mas, muitas vezes, após o textão vem uma selfie, se esquece do assunto, mas as consequências para a vítima seguem.

Muita gente tem escrito sobre isso. Pesquisas publicadas, trabalhos sendo desenvolvidos. São momentos de visibilizarmos quem tem história e quem pode contribuir.

Sugiro os livros "Estupro: Crime ou 'Cortesia'? Uma Abordagem Sociojurídica de Gênero", de Silvia Pimentel, Ana Lúcia P. Schritzmeyer e Valéria Pandjiardjian, "Má Feminista: Ensaios Provocativos de Uma Ativista Desastrosa", de Roxane Gay, "Precisamos Falar sobre Abuso", de Ana Paula Araújo, e "A Culpabilização da Vítima no Crime de Estupro: Os Estereótipos de Gênero e o Mito da Imparcialidade Jurídica", de Giovana Rossi.

Neste último, assim está descrito seu objetivo: "A presente obra pretende analisar o crime de estupro sob a perspectiva de gênero, destacando-o como produto das relações sociais desiguais entre homens e mulheres. Objetiva-se, principalmente, verificar se, ao julgar processos envolvendo esse delito, os magistrados analisam de forma imparcial o fato em si ou se também se reproduzem preconceitos e discriminações, em especial em relação à mulher, que reforçam as desigualdades de gênero e naturalizam ou até mesmo justificam a violência sexual". Bem pertinente ao caso.

Importante pesquisar quem tem, apesar de todo o desserviço do governo, feito um trabalho de formação: União de Mulheres, Geledés, Rede Feminista de Juristas, Mapa do Acolhimento, Themis, a Associação Quilombola Kalunga, que vêm denunciando há anos a violência sexual contra meninas desta comunidade, entre muitas outras de norte a sul. Aliás, seria bem-vindo um apoio financeiro a essas iniciativas por muitas empresas e pessoas que postaram tela rosa.

É preciso ir além da conta da gritaria. Pois ou nos debruçamos sobre o debate com seriedade ou ficaremos refém do mero repúdio moral ao estupro.

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