No empenho de causar espanto, por vezes são criadas expressões de impacto. Contudo, temos que ter cuidado. No caso da decisão judicial sobre a violência sexual em uma boate de luxo de Florianópolis, tomou conta das redes sociais a expressão "estupro culposo".
Em que pese a argumentação do promotor ter ido nesse sentido, me preocupa a fixação no repúdio moral e não a reflexão profunda sobre o assunto. A expressão, interpretação do veículo que a divulgou, exige ressalvas, pois a exploração, muitas vezes em busca de meras curtidas, pode esvaziar o debate de sentido político.
Ora, estupro é estupro, mas e aí? A cada oito minutos uma mulher é estuprada no país. Nas minhas últimas colunas nesta Folha, inúmeros casos.
Onde estão as políticas públicas? Quais as responsabilidades dos governos federal, estadual e municipal nessa realidade de morticínio e violação sistemática de mulheres?
Quais foram os desmontes nas equipes integradas de atendimento a vítimas de violência doméstica e crimes contra a mulher nos últimos anos, e por que isso não é assunto?
Por que foi possível que quatro homens protagonizassem uma audiência degradante com humilhação, desrespeito e violência contra a vítima, que foi exposta a comentários absurdos e julgamentos infames?
Audiência na qual foi justificada a violação de seu corpo pela exibição de fotos em redes sociais, como se autorizasse ou explicasse o estupro, e na qual foram dirigidas palavras de desprezo e misoginia.
É questionar o CNJ sobre procedimentos junto às vítimas e colheita de testemunhos sem acompanhamento especializado. Questionar a formação de agentes de Justiça.
A audiência, com o advogado do réu, o defensor da vítima, o promotor e o juiz foi um espetáculo machista inserido na lógica da cultura do estupro. Sobre ela e suas implicações devemos nos atentar.
Trazer uma compreensão dos fatos que, quando tornados públicos, honram o trabalho da mídia, sem precisar do apelo de uma expressão, não significa deixar de fazer a crítica; pelo contrário —mas refletir: quais são as críticas? Senão, é só gritaria, tuítes e posts de Instagram numa onda de mero repúdio moral ao estupro, fenômeno semelhante a postar uma tela preta na morte de George Floyd.
Várias telas rosas e pouca preocupação com a vítima de fato. Como escreveu Isabela de Monde, cofundadora da Rede Feministas de Juristas: "Essa história tem um centro, a Mari Ferrer. Não nos esqueçamos jamais que ela não é um número, ela não é uma personagem de entrevista e matérias, ela não é objeto de estudo e opinião".
Importante abordar o tema, mas, muitas vezes, após o textão vem uma selfie, se esquece do assunto, mas as consequências para a vítima seguem.
Muita gente tem escrito sobre isso. Pesquisas publicadas, trabalhos sendo desenvolvidos. São momentos de visibilizarmos quem tem história e quem pode contribuir.
Sugiro os livros "Estupro: Crime ou 'Cortesia'? Uma Abordagem Sociojurídica de Gênero", de Silvia Pimentel, Ana Lúcia P. Schritzmeyer e Valéria Pandjiardjian, "Má Feminista: Ensaios Provocativos de Uma Ativista Desastrosa", de Roxane Gay, "Precisamos Falar sobre Abuso", de Ana Paula Araújo, e "A Culpabilização da Vítima no Crime de Estupro: Os Estereótipos de Gênero e o Mito da Imparcialidade Jurídica", de Giovana Rossi.
Neste último, assim está descrito seu objetivo: "A presente obra pretende analisar o crime de estupro sob a perspectiva de gênero, destacando-o como produto das relações sociais desiguais entre homens e mulheres. Objetiva-se, principalmente, verificar se, ao julgar processos envolvendo esse delito, os magistrados analisam de forma imparcial o fato em si ou se também se reproduzem preconceitos e discriminações, em especial em relação à mulher, que reforçam as desigualdades de gênero e naturalizam ou até mesmo justificam a violência sexual". Bem pertinente ao caso.
Importante pesquisar quem tem, apesar de todo o desserviço do governo, feito um trabalho de formação: União de Mulheres, Geledés, Rede Feminista de Juristas, Mapa do Acolhimento, Themis, a Associação Quilombola Kalunga, que vêm denunciando há anos a violência sexual contra meninas desta comunidade, entre muitas outras de norte a sul. Aliás, seria bem-vindo um apoio financeiro a essas iniciativas por muitas empresas e pessoas que postaram tela rosa.
É preciso ir além da conta da gritaria. Pois ou nos debruçamos sobre o debate com seriedade ou ficaremos refém do mero repúdio moral ao estupro.
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