Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu machismo

A vida de Maria do Carmo Valério pelas palavras de Kiusam de Oliveira

Escritora assume a coluna e que escreve em homenagem a mulher por trás da marca Muene, feita para peles negras

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Queridas e queridos, convido à coluna a grande escritora Kiusam de Oliveira, doutora em psicologia pela USP, ativista do Movimento Negro Unificado e mãe de santo de Oxóssi. Nesta data de tantas memórias, nada mais propício que ressaltar e honrar a memória de Maria do Carmo Valério, criadora da Muene Cosméticos.

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Sororidade, essa é a palavra para o dia de hoje e não poderia haver outra mais adequada para representar, de uma só vez, duas mulheres incríveis: a minha anfitriã, Djamila, e a nossa homenageada, Maria do Carmo Valério.

Caminhar juntas, demonstrando empatia e companheirismo, se materializa no gesto da partilha. Aprendamos com isso. Licença peço à nossa ancestralidade para iniciar esse ritual, no qual pretendo tecer, em delicados gestos, uma colcha de retalhos bordada com fios de ouro capaz de desvelar aspectos potentes da vida desta mulher extraordinária que morreu no último dia 15.

Nos anos de 1980, essa mente brilhante criou no Brasil uma empresa pioneira no setor de cosméticos para a pele negra chamada Muene, em uma época em que pessoas negras seguiam uma agenda reivindicatória proposta pelo Movimento Negro Unificado, protestando por educação de qualidade e também para que as empresas nos representassem com o respeito que merecíamos.

Maria do Carmo Valério, 86, fundadora da Muene Cosméticos
Maria do Carmo Valério, 86, fundadora da Muene Cosméticos - Alberto Rocha/Folhapress


Nós, pessoas negras, estávamos cansadas de ter de usar maquiagens que nos deixavam com a pele esbranquiçada. Muene surge como a possibilidade de restabelecer nossa humanidade. Nós, clientes, adorávamos ir à sua loja, pois Maria do Carmo nos recebia pessoalmente com toda a sua elegância e seus chapéus incríveis.

Foi no ano de 2000 que, como pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP, a entrevistei para minha dissertação de mestrado, “Duas Histórias de Autodeterminação: A Construção da Identidade de Professoras Afrodescendentes”.

Ela foi professora em São Paulo e iniciou a sua narrativa assim: “Eu sou Maria do Carmo Valério, aos 66 anos de idade, nascida no dia 16 de julho de 1932, dia de Nossa Senhora do Carmo, que significa:
a que salva. E realmente a gente tem salvado uma porção de pessoas em situações difíceis”.

Nós, mulheres negras, historicamente temos salvado vidas do nosso povo, inclusive as vidas dos nossos algozes: é que a nossa dororidade, isto é, a dor imensa que sentimos provocada pelo racismo e pelo machismo dentro de nossos seres, é incapaz de se tornar maior do que nossa necessidade de amar e construir um caminho para a cura na coletividade.

Posso afirmar que, antes de tudo, Maria do Carmo foi capaz de salvar a si própria. Sua infância foi sofrida a ponto de afirmar que o período “foi tão duro que prefiro esquecer”. Narrou o sonho de frequentar a escola primária e todas as dificuldades para conseguir isso; só tinha oito anos e executava estratégias para atingir o objetivo.

Sofreu humilhações até conseguir uma vaga com uma professora que impôs uma condição: de que fosse aluna ouvinte. Ela aceitou, e foi assim durante o primário até perceber que estava alfabetizada.

Como professora formada, foi transferida para uma escola rural. O dormitório era coletivo, apesar de ser a única lá. E afirma: “Eu cavei a areia toda até encontrar solo fértil embaixo dela, e consegui fazer uma horta”. Com a chegada de outra professora, branca, veio a recusa em dividir o quarto com ela, por racismo.

Discutiram, ela foi denunciada e transferida para São Paulo. Aqui, se encantou por química e reorientou sua rota de vida pesquisando e empreendendo no ramo da beleza. A dor não a desviou do belo. Afinal, a humilhação caminha ao lado da superação; a busca pelo belo a salvou.

Maria do Carmo é luz que caminhou num país cujo solo se configurava em areia engolideira para pessoas negras. Desde criança, tomou para si a responsabilidade de conduzir a vida, cavando com as próprias mãos o solo até se tornar fértil. Para tanto, se apoiou em uma comunidade afetiva —Teatro Experimental do Negro— e, depois, em nós, que esperávamos por tal inspiração.

Com o apoio dela, concluí a dissertação: se a memória é sexuada, como afirmou Michelle Perrot, também é racializada, e a autodeterminação e a criação de um contracorpo afrodescendente que luta são instrumentos fundamentais para o combate ao racismo.

Que honremos a vida e o legado extraordinários de Maria do Carmo Valério —Muene, a expressão da autodeterminação de uma mulher-cavadora que nos fortaleceu através da maquiagem, não para esconder as marcas da vida ou para nos tornar outras pessoas, mas para ressignificar nossas existências já belas. À massa ancestral, seu ori (cabeça) retornou, vitorioso.Por todo legado, gratidão!

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