Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu machismo

Desejo força às mulheres, mas também o direito ao choro e à humanidade

Iansã segurou nas mãos de muitas de nós para seguirmos adiante

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Há muitas histórias contadas através das gerações sobre Iansã, orixá dona das tempestades. Essas histórias são conhecidas como itans na matriz iorubá e, por meio delas, descobrimos mais sobre nossos ancestrais e, ao investigarmos, mais sobre nós mesmas.

Iansã, também conhecida como Oyá, emana uma energia vital que tanto pode ser o revoar de borboletas como uma manada de búfalos; é aquela mulher de fogo que, com seus acarajés, o primeiro deles sempre reservado a Exu, abençoou tabuleiras e mulheres que, com altivez, dignidade e independência, criaram seus filhos e lideraram empreitadas.

Quando passa, não é despercebida. Oyá pinga vermelho pelo mercado, atrai a atenção de todos. Lidera exércitos e é mãe, tendo criado orixás. Só que personifica uma outra maternidade, vinda de uma moral que não se confunde com aquela trazida nas caravelas.

Ilustração de Iansã de perfil com roupa e adereços na cabeça e no rosto nas cores vermelha, amarela e branca. Ela está com a mão apoiada no quadril segurando um eruxin vermelho e amarelo. No fundo, há folhagens, uma espada, um leque aberto, um raio e um par de ciclones.
Linoca Souza

Sua maternidade é aquela que, como conta um itan, deixa seus filhos em casa e sai para o mundo para ganhar a vida. Seus filhos ficam com dois chifres de búfalo e a orientação de que, caso se sintam em perigo, é só bater um chifre no outro que ela vem na velocidade de um furacão.

Pedindo licença a meus ancestrais, escrevo em homenagem a Iansã, sobretudo a inspirar mulheres que pulsam uma energia vital, mas que muitas veem sua chama sob ataque a fim de que seja apagada, posto que sua luz ilumina tudo, inclusive os seres que gostam da escuridão.

Iansã é de uma moral desafiadora à lógica patriarcal racista, que confere como destino à mulher a servidão e a maternidade romantizada pela disposição no lar a todo tempo aos filhos e filhas.

A construção da mulher como aquela que está a serviço do homem, aquela que o recebe após uma jornada de trabalho, são construções sociais que vêm de muito tempo.

Trata-se de uma construção burguesa, que universaliza as mulheres. Isso porque mulheres negras, diferentemente de mulheres brancas, sempre trabalharam e sustentaram seus lares, uma obrigação da conjuntura colonial que as confinou ao trabalho doméstico, enquanto homens negros ficaram desempregados. Iansã segurou nas mãos de muitas de nós para seguirmos adiante.

Atualmente, há um movimento em curso que exige uma pluralidade em empresas e instituições, abrindo caminhos que a muitas de nós estavam complemente fechados.

Sabemos que ainda é um movimento incipiente, dado o alto desemprego no país e o índice de empregos precarizados, que atingem todo grupo social vulnerabilizado, com impactos proporcionais às avenidas de opressão que atravessam uma identidade. Como base da sociedade, mulheres negras são mais atingidas por políticas de austeridade e veem seus ganhos, menores se comparados aos de outros grupos sociais, serem atingidos.

Nesse cenário de precariedade, mulheres que fervem como Iansã lidam com boicotes, deslegitimações e apagamento de humanidades. Certa vez escrevi nesta Folha sobre as “tias do café”, que foram reduzidas a isso apesar de toda a sua sabedoria e pluralidade.

Já em jornadas de maiores recursos materiais, mulheres não estão imunes à deslegitimação. Pelo contrário. Lidam com competição e toda uma estrutura patriarcal. No caso de mulheres negras, o sentimento de solidão as acompanha, visto que em geral são únicas ou com pouquíssimas colegas numa bolha narcísica, como diz Cida Bento, pactuada entre o grupo racial hegemônico ao longo da história.

No Brasil, quantas criam filhos e netos, ao passo que homens saíram de casa e foram viver sem querer saber de nada?

Então escrevo em homenagem a essas mulheres. Dedico em solidariedade para seguirem com dignidade, libertas do sentimento de tutela de homens que pensam não fazer sucesso como mereciam, bem como resistentes à tentação exterior de que se apequenem para caberem em determinadas expectativas que não suas.

Dedico com votos que continuem sempre no processo de se libertar da culpa por não serem as mães perfeitas que estão em todas as reuniões de escola, nem passam anos vendo apenas programas infantis só porque a criança chora.

Dedico, em especial, às mulheres que honram as sociedades secretas femininas ancestrais e se organizam contra a violência doméstica, estupros e abusos sexuais infantis, que se dedicam às redes de apoio em resistência neste país.

Desejo força, mas também desejo o direito ao choro e, sobretudo, à humanidade.

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