Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Não faz sentido que a vida, com toda sua complexidade, seja 'assim e ponto'

'A vida é assim' e 'em time que está ganhando não se mexe' são variações de uma mesma sentença

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Escrevo esta coluna olhando para o mar.

Penso no ano desafiador que enfrentamos, no descaso do governo federal tão bem denunciado nestas páginas durante o ano, assim como tantas atrocidades que os grupos historicamente discriminados enfrentam. Mas hoje, ao olhar para aquela imensidão toda, por rebeldia, quero escrever sobre amor e esperança.

Ilustração de dois pés descalços na areia vistos de cima, como se a pessoa estivesse olhando para seus próprios pés, com o mar logo na frente
Publicada nesta sexta-feira, 1º de janeiro de 2021 - Linoca Souza/Folhapress

Enquanto escrevo, toca Lionel Richie no rádio.

Lembro quando uma de minhas maiores alegrias era ouvir músicas dos meus artistas favoritos na rádio. Gostava de ser pega de surpresa no meio da tarde, me emocionar com uma música fora de hora.

Lembro do prazer da infância de lamber a tigela com a massa do bolo ou com o resto do brigadeiro, dos banhos de mangueira no quintal, do cheiro de café que invadia o meu quarto anunciando que em breve seria hora de levantar, da massa do pão caseiro dormindo em cima da mesa e de todas as minhas estratégias para beliscar um pedaço sem minha mãe perceber.

Recordar pequenas alegrias é um ato de rebeldia, penso. Rebelar-se contra tudo o que nos tira o prazer de apreciar a vida para além do que nos foi ensinado.

“A vida é assim” foi uma das frases que mais ouvi quando reclamava de algo ou me queixava das injustiças do mundo.

Por falta de opção, me rebelei. Lambi tampas dos iogurtes, devolvi conchas ao mar, toquei campainha dos vizinhos quando criança, pisei em cacos de vidros brincando na rua, coloquei chinelo na mão para andar de skate. Carrego marcas no corpo de “menina moleque”, termo dado a meninas que somente quiseram ser crianças.

Chupei manga verde do pé, fiz rato de esponja de aço para pregar peças, bebi água da garrafa. “A vida é assim” nunca me soou uma boa resposta por mais que eu não conseguisse cognitivamente entender.

O mar é calmo, revolto, raso, profundo. Como menina caiçara, nunca me pareceu certa a afirmação definitiva e determinista das coisas. Lembro que meu pai me acordava cedo para ir pescar com ele na praia do Góes, no Guarujá.

Uma vez, após horas sem fisgar nada, peguei um baiacu.

Fiquei com medo do peixe, ele inchando e desinchando, até que meu pai o retirou da isca e ficou observando.

“Esse peixe precisa saber limpar bem, tem veneno”, ele disse. Ao que perguntei: “Mas por que ele se enche dessa forma?”.

“Porque baiacu é assim”, respondeu. Baiacu ser de um jeito fazia sentido, mas a vida, com toda sua complexidade, não fazia sentido ser “assim e ponto”.

Eu nem tinha lido sobre a má-fé sartreana ainda, mas algo não me soava bem. Hoje percebo que guardar o dinheiro do ônibus para voltar para casa a pé do trabalho também foi um ato de rebeldia.

Sobretudo porque eu tirava os sapatos e voltava caminhando pela areia da praia, dobrava as calças para molhar os pés. Foram muitas as vezes em que, mesmo chovendo, eu abria o guarda-chuva e voltava andando pelo calçadão sob espantos de quem passava de carro ou de ônibus.

No almoço, eu comia rapidamente para dar tempo de sentar no banco da praia e contemplar o mar ou ler um livro.

Na empresa em que eu trabalhava, poucos entendiam o “bom gosto” da moça que servia café. Tão somente não me conformava com “a vida é assim”. Mesmo com mais qualificação que as moças do escritório, a gerente disse que eu me sairia bem limpando e servindo café.

Estudava jornalismo à noite e fui para as aulas cheirando a água sanitária muitas vezes. Até que, após um ano, e cansada de promessas, pedi demissão após a gerente dizer: “Não se mexe em time que está ganhando”. Só uma outra forma de dizer “a vida é assim”.

Por falta de opção, me rebelei. Assim como na época em que voltei a estudar quando minha filha tinha três anos e escutei “ser mãe é assim” para que desistisse. “A vida é assim”, “em time que está ganhando não se mexe”, “ser mãe é assim”, “menina moleque”, variações de uma mesma sentença.

O vento sopra forte enquanto escrevo, sinto profunda sensação de alegria e me recordo das vezes em que empinar pipa com meus primos me forjou uma sensação de liberdade.

Alegria por ainda ser capaz de me emocionar com a voz de Lionel Richie e com a generosidade da brisa que vem do mar, mesmo tendo vivido tantas asperezas. Por não ter perdido a capacidade de me encantar com as belezas do mundo.

Richie canta “Hello, is it me you are looking for?”. Sim, Lionel, se sua pergunta refere-se a ver beleza nas folhas das palmeiras balançando como se acarinhassem o céu.

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