Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Brancos e pretos não estão no mesmo barco na pandemia de coronavírus

O país que mais mata negros não nos permite ser ingênuos: se o barco existisse, teria cabines distintas

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Esta coluna, em especial, quem escreve a meu convite é Sarah Coly, advogada mestranda em direito do trabalho e integrante da Lado, um grupo de juristas importante na denúncia de precarizações sociais pelas quais o país enveredou.

Neste texto, Coly denuncia a falácia de “estarmos no mesmo barco” na pandemia, um lema irreal ante as desigualdades materiais que se manifestam à nossa volta. Leia na íntegra.

Como reflexo de uma sociedade forjada sob a cegueira do mito da democracia racial, o slogan midiático do início da pandemia era o de que estaríamos todos no mesmo barco.

Postagens enalteciam a fala de que o vírus não faria distinção, supostamente alcançando a todos e todas de forma igualitária, sem as assimetrias impostas pelas desigualdades sociais, raciais e de gênero presentes em nossa sociedade. A tentativa era de despigmentar os efeitos da pandemia no Brasil, trazendo à lembrança as palavras de Eliana Alves Cruz, em “Água de Barrela”: “O que se queria mesmo era que tudo fosse mergulhado nessa água que branqueia”.

duas pessoas negras usam máscaras brancas
Ilustração de Linoca Souza para a coluna de Djamila Ribeiro de 22 de janeiro de 2021 - Linoca Souza/Folhapress

A realidade, contudo, como sempre implacável, não obedece a fake news ou tendências de solidariedade “instagramável”.

A estrutura estatal e institucional hegemônica alcança suas vítimas premeditadas e, não por acaso, o primeiro corpo atingido pela Covid-19 no país foi o de uma trabalhadora doméstica de 63 anos, infectada por sua empregadora, no local de trabalho, sem que a ela tenham sido asseguradas proteções básicas para desempenho de seu trabalho.

Em um contexto em que alguns cogitam que a Terra pode ser plana e que cloroquina seria a cura, é necessário pequeno desvio para (re)dizer o óbvio.

A senzala moderna segue sendo o quartinho da empregada, como anunciou Preta Rara. Assim, o descaso com a vida da trabalhadora —que nem sequer foi comunicada pela patroa que possivelmente teria sido contaminada— não se relaciona a uma conjuntura aleatória, mas sim ao apagamento do negro e da negra enquanto sujeito de direitos, diretamente conectado com a forte herança racista atrelada ao trabalho doméstico, excluído do amparo da CLT e da própria ordem constitucional até alcançar proteção, no campo formal, por meio da Emenda Constitucional nº 72/2013 e posterior vigência da Lei Complementar nº 150/2015.

Nesse panorama, o retrato de categorias como a de trabalhadores e trabalhadoras domésticas, historicamente posto à margem de garantias de proteção social, dificultou o esforço narrativo quanto a uma suposta democracia racial também no tocante à pandemia, pois questões relacionadas a desemprego, informalidade, alta rotatividade e precarização do trabalho foram elevadas a níveis exponenciais.

As pesquisas realizadas no ano pandêmico reforçaram as certezas de que o processo de individualização de riscos sociais ganha contornos mais severos quando analisados a partir de uma perspectiva de raça, o que se justifica, em termos de metodologia, assim como explica o professor Silvio de Almeida, se concebermos o racismo como fenômeno sistêmico, a alcançar o sujeito nas mais diferentes esferas da vida.

Dados da Pnad Covid-19, realizada pelo IBGE, demonstraram que, no último trimestre de 2020, o número de pessoas desempregadas no país chegou a um total de 14,1 milhões, o que resultou em taxa de desocupação total de 14,3%. Há que se destacar que, dos 8 milhões de pessoas que vieram a ficar desempregadas no primeiro semestre de 2020, mais de 70% são pretos e pretas.

Depois de longa demora, viagem perdida à Índia, debates sobre microchips capazes de rastrear indivíduos e ofertas de cloroquina, eis que chegam por aqui as primeiras vacinas contra o vírus.

Novamente, a alegoria do barco retorna à pauta e as timelines se enchem de hashtags de esperança, palavras de encorajamento em valorização da vida negra, afinal, as primeiras pessoas a serem vacinadas foram duas mulheres de grupos reconhecidamente vulneráveis, Mônica Calazans, enfermeira preta, e Vanusa Kaimbé, indígena, técnica de enfermagem e assistente social (lembre, caro leitor, certamente também não por coincidência).

Sem ignorar o simbolismo dessa vacinação, se não temos espaço para o acaso, o país que mais mata o povo preto também não nos permite ser ingênuos. Não há barco e, se ele existisse, certamente seria composto por cabines distintas. Para além de textos constitucionais e da fluidez e volatilidade das redes sociais, é necessário nomear nossas desigualdades para que, não apenas formalmente, mas também no campo material, tenhamos todos o mesmo direito a inspirar oxigênio.

Salve Mônica Calazans, salve Vanusa Kaimbé! Que elas sejam apenas as primeiras, dentre nós.

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