Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu feminicídio machismo

Estupro de mulheres e feminicídio são escondidos pela imprensa patriarcal

Não consegui chegar ao fim da reportagem sobre Joice Rodrigues, violentada e assassinada na Baixada Santista

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Gostaria de escrever sobre Joice Maria da Glória Rodrigues, 25 anos de idade, que desapareceu na segunda-feira, 27 de setembro, em São Vicente, no litoral de São Paulo. O último sinal de vida foi uma mensagem que mandou ao marido, pedindo para que fosse buscá-la no ponto de ônibus. Ela tinha ido visitar sua avó e estava voltando para casa. Vinte minutos depois da mensagem ser enviada, Joice não atendia mais o telefone.

As buscas foram intensas, empreendidas pela família e pelo marido, determinados a encontrá-la. Era uma conduta estranha, que nunca havia acontecido. No dia seguinte ao registro do desaparecimento, Camila, sua irmã, afirmou ao site G1: “Até agora a gente não tem nenhum vestígio, nada. Ela nunca fez isso. É angustiante, a cada minuto que passa vai ficando mais desesperador, a gente já procurou de todas as formas em todos os lugares possíveis. Ela tem duas crianças pequenas, a gente olha e não sabe o que falar para elas”.

Desenho de uma sombra que tapa a boca de uma mulher negra
Publicada em 7 de outubro de 2021 - Linoca Souza

A família pediu informações e pistas em diversas mídias durante os dias que se seguiram. Consultaram as câmeras de monitoramento do VLT para tentar entender o ocorrido. Percorreram a região da casa da avó, fizeram buscas dia e noite. Nessa terça feira, 5 de outubro, veio a notícia: Joice Rodrigues foi morta por asfixia e concretada na parede por um pedreiro e um comparsa. Eles trabalhavam numa obra perto do local e, após a polícia perguntar se havia um local recém-concretado, o proprietário, dias depois, desconfiou de um acabamento, abriu e a encontrou.

O que os homens estão fazendo com as mulheres neste país tem nome e nós sabemos qual é. Um estupro a cada oito minutos, segundo dados do Anuário da Segurança Pública, um dos maiores índices de feminicídio no mundo, o país campeão em casamento infantil, o lugar onde mais se morre em decorrência da criminalização do aborto, um país onde milhões de crianças crescem sem o nome do pai na certidão. Um país que convive natural e diariamente com estupro, agressão, morte e abandono é um país fadado a ser amaldiçoado. É um país de genocídio de mulheres.

Quando li a reportagem sobre o corpo de Joice ter sido encontrado, não consegui chegar até o fim. É muito doloroso saber que poderia ter sido qualquer uma de nós. Eu mesma sou da Baixada Santista, possuo familiares que moram em São Vicente. Quantas vezes saímos de casa correndo risco de sermos o alvo. Para nós, o ar que respiramos traz o odor do assédio e uma saída de casa não é apenas uma mera voltinha, mas um trajeto de alerta.

Decidi escrever a respeito e, ao me sentar para fazer este texto, li em diversas mídias que o pedreiro assassino confessou à polícia que a matou “depois de fazer sexo com ela”. No teor das reportagens, está escrito que ela havia sido estrangulada após ele ter “mantido relações sexuais com ela”.

É só acionar a busca na internet que se encontram vários textos com essa chamada. É inacreditável que ainda tenhamos que ler coisas dessa natureza. Fazer sexo? Ter mantido relações sexuais? Isso no dia seguinte que a jovem é encontrada em condições aviltantes?

“Fazer sexo com ela?” Fazer sexo se faz com quem há uma relação consentida, não com quem você asfixia e concreta na parede, será que é muito difícil entender que se tratou de uma violência sexual seguida por assassinato? As mulheres são ofendidas em vida e após a morte. Um tratamento desrespeitoso à Joice é um tratamento desrespeitoso a todas nós.

Será que algumas das mídias que deram essas chamadas têm uma cobertura especializada na proteção de mulheres? Pelo visto, a julgar pelo título e pelo conteúdo das reportagens, trata-se da mídia patriarcal de sempre, que escamoteia a precarização de políticas públicas de proteção à mulher, ignora o genocídio e a política de estupro praticada contra mulheres no país para fazer manchete destacando o que o assassino de Joice teria afirmado.

Quais eram os sonhos de Joice? O que ela sonhava para os filhos pequenos? O que as pessoas que a amaram em vida têm a destacar sobre sua trajetória? Se formos além do caso em si, por que não perguntar a razão pela qual mulheres como Joice têm morrido nesse país? Quais políticas têm contribuído para o desmonte de mecanismos de proteção? Qual o orçamento que organizações de defesa das mulheres têm para realizar um trabalho de conscientização? São perguntas mais interessantes do que ler as coisas que são ditas e escritas a respeito de mulheres nesse país.

A verdade é que o assassinato de mulheres vende apenas nas páginas policiais que, a pretexto de noticiar um absurdo desses, seguem com a desumanização que é a base da lógica do sistema de dominação patriarcal. Minha solidariedade à família de Joice Rodrigues.

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