Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Adrienne Shelly fez filme libertador com 'Garçonete', mas não viu seu impacto

Diretora do longa de 2007 foi assassinada aos 40 anos sem assistir à estreia em Sundance

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Lembro a primeira vez em que assisti ao filme "Garçonete" e como fui inundada por sentimentos bonitos e reflexões sobre minha própria vida. Foi em 2008, eu estava no primeiro ano de faculdade, morando em uma cidade e estudando em outra, casada e com uma filha de 3 anos.

Jenna, a garçonete que fazia tortas deliciosas, lutava para sair de um relacionamento abusivo e nomeava as tortas com suas dores e frustações. Não romantizava a gravidez não esperada e mantinha, em meio a tantas dificuldades, seu espírito firme.

cena de filme
Os atores Lew Temple, Keri Russell e Cheryl Hines em cena do filme 'Garçonete', dirigido por Adrienne Shelly - Divulgação

Por mais que a realidade da personagem principal, Jenna, fosse diferente da minha, alguns aspectos nos aproximavam, como a busca pela liberdade e autonomia. Aluguei algumas vezes quando ainda existiam locadoras, indiquei para várias pessoas e é um filme que sempre me dá prazer em assistir.

Geralmente busco pesquisar sobre as pessoas que produziram um filme, mas não sei por que não fiz isso com "Garçonete". Há algumas semanas, tive uma gripe forte, precisei parar uns dias da minha rotina intensa e fiquei de repouso em casa. Decidi assistir TV e ao zapear me deparei com o documentário "Adrienne" na HBO. Imediatamente fui absorvida pela história e exclamei surpresa: é uma das atrizes de "Garçonete"! Na verdade, era muito mais, Adrienne Shelly fora a diretora do filme, além de ter interpretado a personagem Dawn.

Fiquei estarrecida ao saber que Adrienne foi assassinada aos 40 anos em 2006, quando sua filha tinha só dois anos e, portanto, não pôde assistir à estreia do filme no Festival de Sundance em 2007. O documentário, dirigido pelo seu marido Andy Ostroy, além de celebrar o legado de Shelly, é uma forma de elaborar o luto.

Ostroy entrevista familiares, amigos, a própria filha do casal, hoje com 15 anos, e também o assassino de Shelly, Diego Pillco. Ele conta que foi ao escritório de Shelly para roubá-la acreditando estar vazio, quando ela o flagrou saindo do banheiro. Imigrante ilegal nos Estados Unidos, com 19 anos, ele diz ter ficado apavorado pelo medo da deportação e a estrangulou, depois forjando a cena para parecer um suicídio —tese aceita pela polícia, mas que por pressão de Ostroy foi mudada e investigada.

É tudo muito triste nesse momento da entrevista, a dor do viúvo, o arrependimento do assassino, a filha que não conheceu a mãe, a mãe que não viu a filha crescer. Mas o que realmente gostaria de destacar é o legado de Adrienne, ela não pode ser reduzida ao modo trágico pelo qual morreu.

cena de filme
A atriz e cineasta Adrienne Shelly em cena do filme 'Grind - Correndo Contra a Vida', de 1997 - Divulgação

Novaiorquina, ela abandonou a faculdade no último ano para ser atriz e estrelou filmes de sucesso quando jovem. Mas com o tempo percebeu que queria mais da carreira. Não queria ser a moça bonita e frágil, ter que se encaixar em estereótipos, e ria dos filmes de que já havia participado nesse perfil.

Shelly falou abertamente dos assédios que sofreu de grandes produtores, de terem avaliado seus seios para testes, por exemplo. Quando decidiu produzir seus próprios filmes, precisou enfrentar obstáculos para conseguir financiamento, lidar com críticas destrutivas.

É bonito acompanhar o crescimento dela como atriz e diretora, os relatos sobre os obstáculos para mulheres na indústria, o jeito com que conseguia tirar risos de situações trágicas. Fui sendo tragada para a história daquela mulher, mãe, atriz, filha, companheira, diretora. Uma mulher com sonhos como qualquer uma de nós.

Ilustração representando uma mulher branca segurando uma câmera de filmagem
Ilustração publicada em 30 de dezembro de 2021 - Linoca Souza

Ostroy inicia o filme perguntando às pessoas que formam filas para assistir ao musical se elas conhecem a mulher que criou a história —"Garçonete" foi adaptado para o teatro e até hoje é sucesso na Broadway. Todas respondem que não, e Ostroy afirma ter feito o filme para que Adrienne não seja apagada da própria história.

Uma mulher que fez um filme libertador para muitas de nós, mas que não conseguiu ver seu impacto. No dia da sua estreia, em 2007, tristeza e luto marcaram a presença de elenco e família em Sundance. "Garçonete" foi aclamado, mas marcado por uma ausência gritante.

Ostroy. então, levou as cinzas de Adrienne para jogar em alguns lugares. Ele conta que, assim que acabou a exibição do filme, Harvey Weinstein, produtor condenado por assédio sexual e abuso, passou e as cinzas caíram em seus ombros. Não tive como esconder um sorriso.

Dizem que Adrienne libertou muitas, mas não conseguiu libertar a si mesma. Para mim é exatamente o contrário. Ela só conseguiu libertar muitas por ter voado antes. Quero dizer a Adrienne que ela, mesmo após sua morte, deu esperanças a uma jovem mãe no Brasil que também lutava para transcender. Não deve ser esse o papel da arte?

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