Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu

O que dizem as figuras de orixás em relação ao feminino machucado

As grandes feiticeiras estão na religião, e podemos perceber essa presença nas nossas avós e nas mães que muito viveram

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Como curar o nosso feminino ferido? Essa foi uma pergunta que minha terapeuta holística, Danny Alves, me fez uma vez. Confesso que paralisei e fiquei sem respostas. Iniciamos uma série de tratamentos, bem no período em que eu escrevia meu livro "Cartas para Minha Avó", em que celebro o feminino ancestral. E foi um mergulho muito profundo.

Nosso feminino é ferido pelos assédios, imposições, violências. Lembro de como passei a andar curvada no início da adolescência numa tentativa de esconder meus seios em crescimento porque os homens já olhavam para eles. Das vezes em que atravessei a rua para desviar caminhos, de fingir que não escutava violências disfarçadas de cantada na rua. De ser ensinada a me comportar como "moça correta" negando quem sou.

É uma sociedade que odeia o feminino. Dizer "você joga como mulher" para um praticante de futebol é insulto, "você chora como uma menininha" é ofensa. O sofrimento da mulher com o homem que não presta é visto como prova de caráter ou o comportamento da "mina de fé".

Djamila Ribeiro
A colunista Djamila Ribeiro - Flavio Teperman/Divulgação

A gente é ensinada a relevar e aguentar tudo em nome do amor. São ciclos de desigualdades intermináveis.

Desde muito cedo nosso feminino é machucado, moldado para os interesses de uma sociedade patriarcal, subalternizado. Esse feminino se desloca também, o gay afeminado será mais ultrajado, por exemplo. Destinos são criados e disfarçados de escolhas.

Eu era chamada de Maria-moleque porque gostava de brincar na rua e andar de skate. Minha filha era preterida pelos meninos nos jogos de futebol mesmo jogando melhor do que muitos deles. A gente cresce entendendo que precisa lutar e se defender, tendo de lidar com muitas agressões naturalizadas.

Além disso, outras mulheres feridas também ferem e a gente aprende a criar uma relação de desconfiança e rivalidade entre nós ao passo que estamos sempre prontas a absolver os homens.

Ler outras mulheres, conhecer seus trabalhos, me ver através deles, foi fundamental para meu processo de cura, assim como o candomblé. No artigo "O Poder Feminino no Culto aos Orixás", Sueli Carneiro e Cristiane Abdon Cury analisam a figura da mulher na mitologia africana reproduzida nos terreiros de candomblé, os arquétipos das orixás e as diferenças sociais quanto às relações de gênero. As autoras explicam a tradição da visão das mulheres como bruxas, mas evidente que num sentido em tudo contrário ao historicamente atribuído pela civilização ocidental.

As grandes feiticeiras estão, sim, na religião, e podemos percebê-las nas nossas avós, nas mães que muito viveram, seja em estado de cólera, seja em serenidade, quando falam, e todos se calam, deixando no ar as injustiças estruturalmente postas. "Discutir, portanto, a mulher no candomblé nos remete imediatamente às figuras míticas femininas que compõem um perfil da compreensão que o sistema mítico do candomblé possui da condição feminina. As Ìyá Mi, ancestrais míticas, são a máxima representação do poder feminino. Também são chamadas de Ajé, que em iorubá significa bruxa ou feiticeira."

Dentre as Ajés, a mais temida é Ìyá mi Oxorongá. A partir dessa feiticeira, que com uma palavra amaldiçoa de morte, é possível compreender como essa representação se distancia do olhar ocidental, de identidade vitimada: "Pronunciando-se o nome desta orixá, a pessoa que estiver sentada deve se levantar, e quem estiver de pé fará uma reverência, por se tratar de uma orixá terrível a quem se deve respeito. Pássaro africano, Oxorongá emite um grito horríssono, de onde provém seu nome. O símbolo dessa orixá é a coruja dos augúrios e presságios. Ìyá mi Oxorongá é a dona da barriga, e não há quem resista a seus ebós fatais".

Vale dizer que as representações de Ìyá Mi ocorrem em seus aspectos socializados nas oxirás culturadas, como Oxum, Iansã, Iemanjá, Nanã, Obá e Ewá.

Nos terreiros por todo o país são cultuadas também as pomba-giras, entidade que atende por vários nomes, sendo um dos mais comuns Maria Padilha. Sua representação é de uma mulher livre, sensual, que ao mesmo tempo conquista e espanta qualquer homem.

É a ela que se fazem oferendas para se livrar de um homem encosto (e são vários, não é, minhas queridas?). Quem for vê-la em uma das giras, vai ouvir uma das cantigas mais conhecidas, como "arreda homem, que aí vem mulher, Maria Padilha, rainha do Candomblé". E ela arreda qualquer um.

Nessas deidades me inspiro numa trajetória de cura e numa releitura do que me foi ensinado sobre o que é ser mulher. Voltando a pergunta de Danny, respondo hoje: com dedicação e enxergando o feminino como poder, sem medo de olhar para as feridas, tentando elaborar as dores, olhando com generosidade para nós mesmas e para as outras. E, sobretudo, pensando em saídas coletivas de fortalecimento.

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