Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Guerra entre Ucrânia e Rússia expõe racismo contra refugiados

Classificação racial de quem pode se salvar deveria ser motivo de repúdio equivalente à comoção dos últimos dias

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De início, quero compartilhar da indignação pela guerra iniciada na semana passada. Entre violências históricas, projetos de colonização e nacionalismo supremacista que marcam as relações geopolíticas, há incontáveis pessoas atingidas e um rastro enorme de destruição.

Assistimos impotentes ao curso de nossos tempos caminhar para o aprofundamento de desigualdades, em vez da urgente construção de projetos de superação de discriminações, com objetivo de alcançarmos patamares dignos de existência. A interrupção do conflito para uma rodada de negociações pela paz, com concessões múltiplas entre os envolvidos, deveria ser a principal saída. Se o Brasil ainda fosse respeitado, quem sabe poderia intervir positivamente.

Ilustração representando sombras de três soldados de perfil armados
Ilustração publicada em 3 de março - Linoca Souza

Cenários como esse levam ao adoecimento ainda maior do meio ambiente. Além do mais, uma guerra trará maiores prejuízos a quem já está em uma posição fragilizada na pirâmide social, seja na Rússia, na Ucrânia ou em países que sofrem com a colonização. Enquanto habitantes do sul do mundo, de uma forma ou de outra, pela posição geopolítica desfavorecida, sentiremos de forma negativa e desproporcional os impactos desse confronto.

Para além disso, manifesto minha solidariedade à população na Ucrânia e na Rússia que não concorda com a guerra e vem sofrendo direta e rapidamente os efeitos dela. Aprofundo a extensão da solidariedade para a população à margem das políticas de acolhimento migratório.

É normal que muitos estereótipos emerjam de maneira rápida em uma cobertura repentina sobre uma região pouco debatida nos noticiários. Um deles gira em torno do ucraniano padrão. Em linhas bem simples, seria como projetar uma ideia de um "ucraniano médio", que representa todos os ucranianos. No caso, de uma forma simplista, o padrão é homem, branco, loiro e de olhos azuis. Porém, em tempos de nacionalismo de extrema direita, a carapuça serve a definições próprias de "verdadeiros ucranianos" ou definições assemelhadas que acabam encontrando as descrições físicas citadas.

Os problemas dessa superficialidade são vários. Mulheres experimentam uma realidade diferente da dos homens em processos migratórios, por exemplo. Porém, o que quero debater no texto são as incontáveis pessoas negras nascidas no país, como também os milhares de pessoas africanas que estudam em universidades ucranianas, em decorrência de acordos bilaterais em vigor há décadas. Pessoas de Marrocos, Nigéria, Egito, entre muitos outros.

Na mesma situação de fuga de guerra, se multiplicam os relatos de pessoas negras que foram barradas na fronteira, impedidas de deixarem o país e submetidas a diversas experiências discriminatórias. Relatos, inclusive, do jogador de futsal brasileiro Moreno Santiago.

Reportagem desta Folha de 28 de fevereiro com o título "Imigrantes negros na Ucrânia dizem ser alvo de racismo e barrados em trens ao tentar fugir" traz mais informações. Vídeos foram feitos, países como Nigéria e Jamaica emitiram nota oficial condenando os atos. Há uma mobilização internacional em curso documentada que nos permite afirmar que imigrantes negros na Ucrânia são alvo de racismo e barrados em trens ao tentar fugir da guerra.

A análise estereotipada pode ser facilmente constatada em exemplos de comentaristas. No mesmo dia 28, o jornalista Diogo Bercito publicou nesta Folha exemplos de comentários que buscam justificar uma empatia pelos ucranianos-padrão em detrimento dos milhões de refugiadas e refugiados não brancos, de várias nacionalidades, muitos deles que também fogem de guerras e tentam a vida no continente europeu.

A saga cruel contra pessoas negras é um reflexo da forma como são tratadas na região, em períodos de paz ou guerra. Na imigração, o racismo antinegro é um elemento decisivo para verificarmos se haverá ou não hospitalidade e acolhimento, seja nas fronteiras da Ucrânia, seja em todos os países da Europa ou até mesmo no Brasil —mas deixemos esse assunto para outro dia.

Do ponto de vista da guerra recém-iniciada, a classificação racial de quem pode se salvar e de quem não deve ser salvo deveria ser motivo de repúdio equivalente à comoção dos últimos dias —justa, diga-se de passagem, mas, quando posta ao lado do descaso com a população negra, revela como o racismo hierarquiza vidas e prioriza comoções.

Como aponta a nota da União Africana, composta pelas 55 nações do continente, é necessário que "todos os países respeitem a lei internacional e demonstrem a mesma empatia e apoio para todos aqueles que fogem da guerra, independentemente da sua raça".

É uma situação que revela sintomas profundos e debates inescapáveis sobre uma população em diáspora também em fuga de guerras injustas e em curso, porém com pouco ou nenhum espanto.

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