Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

'Medida Provisória' ganha ares de realidade em um país como o Brasil

Filme segue tradição de arte comprometida com a mudança não só que se quer, mas de quem luta para ela acontecer

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Muitos pensadores e pensadoras na história já refletiram sobre a importância de a arte ser política ou do que muitos denominam de arte engajada. Uma arte que faça as pessoas refletirem sobre temas importantes na sociedade ou tocá-las de modo a sensibilizá-las.

Muitos artistas, a partir de expressões artísticas, denunciaram a ditadura militar, violências sistêmicas, períodos sombrios de determinadas épocas.

Lima Barreto, por exemplo, escreveu contos e livros em que retratava a dureza do racismo, as mazelas sociais, mostrando que a literatura, como afirma Sartre, é uma arte engajada.

Temos exemplos na literatura, na música, no cinema. Obras que tocam ao mesmo tempo em que ensinam, trazem referências, instigam.

A arte tem um poder que, muitas vezes, transcende o ativismo. Há pessoas que vão entender ou refletir sobre determinados assuntos a partir dela, ou ao menos iniciar um processo de entendimento.

Nesta semana assisti ao filme "Medida Provisória", primeiro longa dirigido por Lázaro Ramos, e a sensação foi de, apesar do drama relatado na obra, ficar feliz em ver um filme de alcance nacional trazer para o debate temas como eugenia, racismo.

Inclusive por isso, o longa sofreu para que a Agência Nacional de Cinema providenciasse as autorizações necessárias para sua veiculação nas salas de cinema, o que Ramos classificou como censura burocrática. O poder da arte assusta.

O filme foi inspirado na peça "Namíbia, Não!" escrita por Aldri Anunciação —que Lázaro Ramos dirigiu em 2011. Cercada de referências históricas, a trama parte de uma narrativa distópica. Após um advogado pedir indenização ao Estado brasileiro pelo tempo de escravização, o governo, como reparação social, decreta uma medida provisória para enviar os negros —que chama de "cidadãos de melanina acentuada"— de volta à África.

Essa medida traz caos, mas também o surgimento de movimentos de resistências. No grande elenco, de mais de 77 artistas, estão Taís Araújo, Alfredo Enoch, Adriana Esteves, Maira Azevedo, Seu Jorge, entre outros. E já é a segunda melhor estreia do cinema nacional no ano. É digno de nota ver um elenco majoritariamente negro na frente e por trás das câmeras.

No país em que existiu a política do branqueamento, em que foi estabelecida uma visão de mundo a partir da lógica branca e colonial, o filme ganha ares de realidade.

Impossível não refletir sobre as criminalizações de expressões e de pessoas negras que ainda persistem no país, a perseguição a movimentos sociais, a persistência em manter desigualdades, as consequências de se viver sob governos autoritários.

Porém, também chama a atenção a personagem Capitu, médica interpretada por Taís Araújo. Capitu não tem muita consciência sobre as consequências do racismo e, durante a trama, vai se entendendo e fortalecendo.

mulher negra encara o horizonte
Taís Araújo em cena do filme 'Medida Provisória', dirigido pelo ator Lázaro Ramos - Divulgação

Considero importante a personagem por retratar uma realidade muito comum no Brasil. Nesta semana, a atriz falou a esta Folha sobre a importância dessa personagem: "Essa é uma mulher que é
levada a pensar sobre essa causa, há um letramento racial e uma construção de identidade de mulher negra ao longo do filme".

Como afirmo no meu livro "Lugar de Fala", ser negro não é ter uma consciência discursiva desse lugar, sobretudo no Brasil, lugar onde foi criado o mito da democracia racial, a ideia romântica de não ter conflitos raciais, da mestiçagem como escamoteadora da opressão racial. Há no imaginário coletivo essa ideia de que pessoas negras são sempre ativistas, militantes, negando que consciência racial é uma construção, um processo.

Penso que a personagem de Araújo reflete o que diz a pensadora feminista negra Lélia Gonzalez em depoimento publicado em 1988: "A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada".

O filme aborda muitas questões como cito acima, mas também fala de amor, da esperança que vem da luta, do reconhecimento de personagens históricos, de ancestralidade e da possibilidade de reconstrução de subjetividades atravessadas por imposições.

Penso que o filme segue a tradição de uma arte comprometida com a mudança não só que se quer, mas a mudança de quem luta para ela acontecer. É bonito ver uma produção nacional com protagonismo negro e narrativa de libertação.

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