É muito bem-vinda a série de produtos editoriais sobre violência sexual na infância e adolescência da parceria entre o Instituto Liberta e a Folha, que definiu o tema como "a causa do ano".
Cobra-se muito que a mídia tenha setores especializados e intensa cobertura de um tema tão sensível e iniciativas que apontam para esse caminho devem ser celebradas.
Como já escrevi nesta Folha, há um genocídio em curso contra as mulheres e meninas no país, e a imprensa é uma importante aliada na visibilização dessa situação dramática.
Por isso, a escolha da causa do ano não poderia ser mais acertada. Sem dúvidas, enfrentamos problemas sérios no que diz respeito a democracia, destruição do ambiente, racismo estrutural contra negros e indígenas e muitas outras questões. Contudo, é necessário dizer que a realidade infernal vivida por mulheres, adolescentes e crianças em ambientes domésticos continua um tabu.
Um breve olhar sobre os dados nos mostra o tamanho do problema no país. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, a cada hora quatro meninas menores de 13 anos são vítimas de estupro. Quanto aos meninos, de quatro a oito anos é a idade da maior parte das vítimas dessa violência.
Levantamento recente da Polícia Rodoviária Federal e da organização Childhood Brasil identificou 3.651 pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes, sendo que 470 foram considerados "críticos". É o quarto país do mundo em casamento infantil, confinando essas crianças e adolescentes, sobretudo meninas, em um ciclo de pobreza. A depender do lugar social que ocupam, são ainda mais desprotegidas. Vale dizer, são realidades em que impera uma subnotificação de casos, por uma série de motivos. A começar pela disparidade de forças na relação do abuso, em que a criança e adolescente estão em um contexto de hierarquia familiar, que faz valer uma lei do silêncio.
A subnotificação também passa pela falta de estrutura estatal para acolher as vítimas dessas violências. Feministas vêm destacando nos últimos anos a diminuição drástica de verbas e até mesmo erradicação de programas de acolhimento de mulheres, adolescentes e crianças.
A situação preocupa por si só, mas também porque o país deveria expandir sua rede de proteção e não retroceder, aumentando ainda mais as distâncias entre a população socialmente mais vulnerável e a proteção do Estado.
É quase desnecessário ressaltar os danos psíquicos que o abuso infantil causa em uma pessoa. São episódios de exposição de seres vulneráveis a traição de confiança, feridas emocionais e abusos de seus corpos. E, se há consequência para uma pessoa em si, também devemos observar as consequências para a sociedade como um todo. Trata-se de uma sociedade machucada, mas que, ao mesmo tempo, pouco fala sobre essa dor.
Na série, destaca-se a campanha #AgoraVcSabe, do Instituto Liberta, que propõe um levante virtual para visibilizar o tema —que mesmo diante do seu cenário endêmico, com consequências traumáticas para meninas e meninos, segue sendo subestimado. A campanha trabalha com conscientização e uma das ações propostas é que adultos, de todas as regiões, rompam o silêncio sobre violências sexuais sofridas quando crianças, gravando um vídeo que será exibido de forma coletiva.
Conforme explica a presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, "não estamos pedindo para que ninguém fale do seu caso, nem conte detalhes do que aconteceu, nem com quem aconteceu. É um grito contra a violência, é um conjunto de frases ditas por todos nós", afirma ela, sobre a adesão ao movimento.
A frase "eu fui vítima e agora você sabe" será dita simultaneamente por milhares de pessoas no dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Caso algum leitor ou leitora se identifique com essa situação, queira e se sinta confortável para participar, também pode enviar seu vídeo para o site agoravocesabe.com.br.
Você pode também buscar saber, acompanhar e apoiar iniciativas para denúncia, acolhimento e desenvolvimento social dessas pessoas, seja ações feitas por organizações, grandes e pequenas, nacionais e comunitárias, como também pelo serviço público, que continua engajado, em que pese os cortes orçamentários do governo federal no poder.
Para combater esse cenário, será preciso muita mobilização. A causa do ano é a causa que seguirá sendo de muitos e muitos anos.
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