Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Mila

Fugiu de casa aos dez, viveu para o trabalho e a família e hoje sente orgulho

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Três ou quatro anos atrás, Mila chegou febril. Negra alta, esguia, os olhos negros determinados, só tomou a liberdade de sentar quando perguntei se ainda esperava crescer.

Tinha medo de estar com uma doença maligna na garganta, tamanha a dor ao engolir que se instalara havia uma semana. Era uma amigdalite purulenta que tratei com antibiótico.

Desde então, abria um sorriso que iluminava o rosto quando nos cumprimentávamos, ao cruzar na galeria. Nosso relacionamento ficou limitado a esses encontros ocasionais até a última segunda-feira, quando retornou com um nódulo no seio.

Perguntei há quanto tempo estava na penitenciária.

— Cinco anos desta vez.

— E das outras?

— Foram duas passagens, sem contar as da Febem.

— Condenações longas como esta?

— Não. A maior foi de três anos. Cadeias de poeta, como dizem por aqui.

Ilustração
Líbero

Mila nasceu numa das comunidades mais pobres da Brasilândia, zona norte de São Paulo. Morava num quarto e cozinha com a mãe, faxineira, dois irmãos mais novos e o padrasto, segurança de um mercadinho.

No dia em que completou dez anos, foi estuprada pelo padrasto que ameaçou matá-la se contasse para a mãe. Ao ser violentada pela segunda vez, fez uma trouxa com as roupas e fugiu de casa. Antes de sair pela porta em disparada, no entanto, teve o cuidado de rachar a cabeça do agressor com um pedaço de cano que o atingiu à traição, junto à pia.

Com o dinheiro surrupiado da carteira do pedófilo, pegou um ônibus para a praça da Sé, o lugar mais distante de que ouvira falar:

— O primo de um menino da escola tinha fugido para lá.

Com a sabedoria dos dez anos, foi viver por conta própria com os menores que passavam os dias e as noites nas imediações da praça. 

Lá, conheceu Dora, menina de 14 anos que a adotou como filha:

— Foi minha mãe de rua, me acolheu e protegeu. Se alguém vinha com maldade para o meu lado, ela virava o cão. Furou com estilete a barriga de um moleque mais velho que tentou me pegar à força. Deu uma bofetada na cara do português da lanchonete, que perguntou quanto ela queria para me mandar fazer um programa com ele.

Com Dora, dividia as quentinhas fornecidas pelos donos de bares e restaurantes, compadecidos com a sorte daquela menina magrinha de olhar inquieto. O dinheiro para as demais necessidades vinha da habilidade da parceira no furto de mercadorias, enquanto Mila vigiava na porta da loja, atividade responsável pelas internações na antiga Febem.

Dora foi firme na educação da filha:

— Gente como nós, começa cheirando cola. Quando vê, está jogada feito escrava no meio da cracolândia. Você e eu não, nosso futuro vai ser diferente porque temos uma à outra.

Mais tarde, conheceram um distribuidor de dinheiro falso que as empregou como entregadoras. Alugaram um quarto na rua Helvétia; as despesas extras pagavam com os furtos que lhe renderam a primeira das cadeias de poeta, mal atingida a maioridade.

Aos 23 anos, conheceu, se apaixonou e foi viver com Platão, filho do dono de um "poupatempo", escritório especializado na falsificação de documentos. Insistiu com Dora para morar com eles, mas a amiga recusou.

Trabalhou com o companheiro e o sogro durante cinco anos, período em que aprendeu a arte da falsificação e deu à luz a um casal de gêmeos.

— Foi o período mais feliz da minha vida.

A felicidade foi interrompida pelos disparos de dois motoqueiros contra pai e filho, num ponto de ônibus.

Viúva, com duas crianças, Mila assumiu o "poupatempo" e a clientela do sogro. Emitia carteira de identidade e de motorista, CPF, atestado de antecedentes, certidões negativas, escrituras de imóveis e recibos de pagamentos jamais efetuados.

— Os clientes elogiavam a perfeição dos meus documentos. Coloco uma carteira de identidade verdadeira ao lado da que eu faço, o senhor não percebe a diferença.

Nunca mais namorou nem saiu para se divertir sem os filhos, viveu para o trabalho e a família. Hoje, sente orgulho:

— A menina estuda na USP, o menino faz engenharia numa faculdade particular. Não fumam, nunca usaram droga nem chegaram perto de uma delegacia.

Além da casa em que vivem, cada um é proprietário de dois imóveis de aluguel. Tudo legalizado, com escrituras oficiais assinadas em cartório.

Quando fala de suas origens e do que fez pela família, ela sorri.

— Quantas mulheres que fugiram de casa aos dez anos, chegam aos 45 com cinco imóveis, dois carros e os filhos na universidade?

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