Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho

Quando vejo jovens da classe média alta aglomerados nos bares, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo

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Você quer sair, encontrar os amigos, jantar fora, beber no bar, viajar para Minas. A rotina de ir para o escritório que amofinava seus dias agora é um sonho, José.

Nós sabíamos que seria difícil manter o afastamento social por muito tempo. Com 15 milhões de pessoas aglomeradas em moradias precárias nas favelas, 46% das quais sem água encanada, como ficar em isolamento?

Todos concordaram que os serviços essenciais não podiam parar. Mas eles são mantidos por quem? Pelos que trabalham em mercados, padarias, farmácias e portarias de prédios, pelos entregadores e seguranças e pelos informais encarregados dos pequenos serviços. Era evidente que a mobilidade obrigatória dos menos desfavorecidos levaria o vírus para a periferia das cidades.

O preço pago pelos que vivem nos bairros distantes tem sido desproporcional. A prevalência da infecção pelo vírus na pobreza da zona sul de São Paulo é quase quatro vezes maior do que na zona centro-oeste, de poder aquisitivo mais alto. Em todas as cidades brasileiras, a mortalidade atingiu níveis mais elevados entre pobres e pretos, como acontece com doenças de caráter epidêmico, desde a Antiguidade.

Quando vejo os mais jovens da classe média alta aglomerados nos bares e restaurantes, sem máscara, sinto um misto de decepção e de desprezo.

Eles se comportam como se o vírus não existisse ou como se não fosse problema deles. Bancam os corajosos para impressionar os amigos, ridicularizam os mais cuidadosos, mas, ao surgir a primeira febrícula, correm para os melhores hospitais da cidade, mortos de medo de morrer, sobrecarregando e pondo em risco os profissionais de saúde que cuidarão deles.

Ilustração de uma esquina movimentada. A morte está andando com sua foice no meio de uma multidão de esqueletos vestidos, alguns estão com copos nas mãos e outros gesticulam
Líbero/Folhapress

Isso quando não levam o vírus para os pais, para crianças e pessoas vulneráveis da família. Daria tudo para saber o que lhes passa pela consciência quando um ente querido infectado por eles vai parar na UTI.

Quanto à empregada da casa que contraiu o vírus do patrãozinho, o remorso do transmissor é provavelmente nenhum. Ela e os parentes que se arranjem. Não é para isso que existe o SUS?

A exposição irresponsável ao vírus é, antes de tudo, um ato de egocentrismo covarde. O temerário se arrisca não por ser destemido e estar disposto a arcar com as consequências de seus atos, mas por acreditar que os mais jovens serão poupados. Se não se preocupa nem sequer com a própria família, vamos pretender que tenha consideração pela comunidade? Que venha a entender que, assim agindo, participa ativamente da disseminação da epidemia?

Embora alguns médicos ainda acreditem que um antimalárico ou um prosaico vermífugo administrados nas fases iniciais curem a Covid, a fé é de pouca valia nesta hora. Achar que a vacina nos salvará assim que disponível é pensamento mágico, o caminho da imunização em larga escala será longo, penoso e cheio de incertezas. A tal imunidade de rebanho antes da existência de uma ou mais vacinas eficazes não passa de miragem.

A conclusão, José, é que conviveremos com esse coronavírus por muitos meses, senão por anos. Não é pessimismo, olhe o que ocorre na Europa, na Ásia e, especialmente nos Estados Unidos, o exemplo máximo de como a cegueira estúpida de um dirigente pode causar uma tragédia de proporções inimagináveis. Ou é por acaso que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, ostentam o título de campeões mundiais de mortalidade?

Sejamos sensatos, meu amigo, é tarde para chorarmos o leite derramado. De agora em diante temos de concentrar nossos esforços em reduzir a velocidade de disseminação da epidemia. No decorrer deste ano aprendemos que o vírus é transmitido por via respiratória, preferencialmente em lugares fechados, quando as pessoas se aproximam umas das outras. Aprendemos que a higiene das mãos e o uso de máscara são medidas protetoras. Não é pouco, já sabemos o essencial.

Nosso desafio é a adoção de medidas para evitar aglomerações e convencer a população a colocar máscara ao sair de casa. Essa deve ser a ênfase das campanhas de saúde pública e do exemplo que cada um de nós deve dar às crianças, aos que não estudaram e aos ignorantes que frequentaram as melhores escolas.

O uso de máscara é medida simples, protetora, acessível a todas as camadas da sociedade, mas enfrenta o problema da mudança de hábitos, dificuldade maior do comportamento humano.

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