Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Não sou otimista alienado, mas há motivos para festejar a chegada de 2021

Epidemias aceleraram progressos científicos e transformações sociais que teriam levado décadas para acontecer

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Há motivos para festejar a chegada de 2021. Não, prezada leitora, não sou otimista alienado nem costumo escrever sob os efeitos do álcool ou de qualquer alucinógeno.

A primeira razão para comemorarmos é estarmos vivos neste fim de ano.

Ilustração de um atleta pulando uma barreira, na qual está escrito 2021, com um pé batendo em uma pedra, na qual está escrito 2020
Publicada neste domingo, 3 de janeiro de 2021 - Líbero/Folhapress

Acha pouco? Cerca de 200 mil brasileiros não tiveram a mesma sorte, muitos com idades próximas à nossa, fatores de risco e vida semelhantes.

A segunda razão para celebrar é a chegada da vacina, que, no início da pandemia, não passava de um sonho.

O que acontecerá no ano que se inicia? Tudo indica que a epidemia brasileira continuará fora de controle por muitos meses. O impacto da vacinação será insuficiente para o retorno à rotina de antes, até que a porcentagem de vacinados atinja 80% ou mais da população, como indicam os estudos mais recentes sobre a imunidade coletiva ao vírus.

A tarefa de imunizar mais de 160 milhões de brasileiros não seria trivial, ainda que já tivéssemos contratado os 320 milhões de doses necessárias. Nos passos trôpegos em que andamos, quanto tempo levará?

Da mesma forma, nada faz crer que o governo federal deixará de ser inimigo feroz das medidas preventivas indicadas pelos especialistas do mundo.

De onde, então, viria meu otimismo, estimado leitor?

Ele vem dos ganhos sociais. O SUS deu provas de que é capaz de se reinventar quando existe vontade política.

As demonstrações de solidariedade das pessoas e da iniciativa privada com os estratos mais desassistidos da população têm sido inúmeras e até surpreendentes para uma sociedade egocêntrica e insensível ao sofrimento alheio como a nossa, em que o conceito de comunidade não passa de uma abstração.

Emergiremos dessa epidemia mais preparados para enfrentar a próxima, mais conscientes de que governantes irresponsáveis podem provocar desastres, de que não devemos esperar que os governos resolvam todos os problemas sem a nossa participação e, acima de tudo, convencidos da imoralidade da desigualdade social que nos tornou um dos países mais violentos do mundo.

Nos últimos 10 mil anos a humanidade conviveu com a escravidão. Egípcios, gregos, romanos e outros povos guerreavam para roubar riquezas, expandir territórios e aprisionar escravos para assegurar os privilégios de seus cidadãos.

Mais tarde, o colonialismo não faria diferente: sequestraria indígenas e africanos de pele preta para escravizá-los em países como o Brasil, o último a declarar o fim desse crime inominável na América. Não custa lembrar que a Lei Áurea foi assinada há apenas 132 anos (meus avós já tinham nascido).

Hoje olhamos para nossos antepassados com desprezo: como compactuavam com realidade tão ignóbil?

A mesma indignação revoltará os jovens das próximas gerações. Perguntarão como conseguíamos viver num dos países mais desiguais, sem lutar por uma distribuição de renda menos perversa?

Como permitíamos que os 10% mais ricos ficassem com 43% dos rendimentos per capita, enquanto aos 10% mais pobres coubesse 0,8%?

Seremos desprezados por eles como foram para as gerações seguintes os senhores de escravos e suas legiões de capitães de mato, encarregados de perseguir os que ousavam ir atrás da liberdade.

A pandemia nos ensina que nenhum de nós estará seguro enquanto houver outros brasileiros infectados.

Portanto, lavar as mãos, usar máscara e evitar aglomerações são medidas que continuarão necessárias durante este novo ano, com grande probabilidade de invadir 2022.

Nem a vacinação nos livrará desses cuidados. Primeiro, porque nenhum imunizante protegerá 100% dos que o receberem. Depois, porque mesmo vacinados e protegidos poderemos adquirir o vírus sem ficar doentes, mas carregá-lo em nossas mucosas para infectar familiares e disseminá-lo nas andanças pela comunidade.

Apesar de nos chocarmos com a inconsequência estúpida dos que se aglomeram sem máscara em festas e bares, insensíveis à possibilidade de infectar os pais e os avós, não devemos esquecer que representam a minoria dos brasileiros. A maioria de nós é formada por pessoas conscientes, que não querem correr risco de pegar o vírus e muito menos de transmiti-lo para a família e toda a sociedade.

Na história da humanidade, guerras e epidemias, ao lado das iniquidades impostas, catalisaram progressos científicos, avanços tecnológicos e aceleraram transformações sociais que teriam levado décadas para acontecer.

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