Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Ciência ainda deve explicar por qual motivo há indivíduos imunes à Covid

Pessoas não vacinadas geneticamente resistentes ao coronavírus começam a ser objeto de estudos

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O telefone tocou numa segunda-feira às 23h. "Meu marido acordou com febre, fez o teste PCR, e deu positivo. O que eu devo fazer para não pegar?"

Expliquei que seria preciso isolá-lo num quarto, os dois deviam usar máscara o tempo todo e guardar o máximo de distância um do outro.

Ela quis saber se era fundamental manter o isolamento com rigor. Respondi que sim, que o período em que a transmissão acontece com mais facilidade é o que vai de dois dias antes dos primeiros sintomas a três dias depois do aparecimento deles. Ela acrescentou meio sem graça: "Pois é. Nós tivemos relações no sábado e no domingo".

Ilustração de médicos examinando a armadura de um cavaleiro medieval
Publicada nesta quarta-feira, 3 de novembro de 2021 - Líbero

A doença do marido evoluiu com comprometimento pulmonar, ele foi hospitalizado, mas não houve necessidade de transferi-lo para a UTI. Ela permaneceu assintomática, com testes repetidamente negativos.

Como explicar esses casos de contato íntimo com uma pessoa infectada, sem ocorrer transmissão? Alguns indivíduos são naturalmente resistentes ao SARS-CoV-2?

Esse fenômeno é descrito em outras viroses. Pessoas que dividem a cama com alguém resfriado ou gripado nem sempre ficam doentes. Num inquérito epidemiológico que realizamos na Casa de Detenção, o Carandiru, encontramos uma travesti presa havia vários anos que tivera mais de mil parceiros sexuais no ano anterior à pesquisa, com os quais tinha praticado sexo anal receptivo, desprotegido —a prática sexual de maior risco. Era HIV negativa. O teste foi repetido e o resultado confirmado três vezes. Naquela época a prevalência do HIV no presídio era de 13,7%.

Numa publicação na revista Nature Immunology, um grupo internacional de cientistas iniciou uma pesquisa para estudar pessoas geneticamente resistentes ao coronavírus. O objetivo é identificar os genes que as protegeram da infecção.

A dificuldade numa pesquisa com essas características é encontrar participantes que foram expostos, sem proteção, a uma pessoa infectada, por tempo prolongado, mantendo o teste negativo, como o da paciente que me ligou na segunda-feira.

No caso do estudo em questão, eles vão se concentrar em casos semelhantes: pessoas não vacinadas que dividem a casa e a cama com alguém infectado, situação definida em medicina como pares discordantes. Em dez centros de pesquisa, um dos quais no Brasil, já foram recrutados 500 candidatos em potencial.

Desde a publicação do estudo, no entanto, surgiram mais 600 que se apresentaram como voluntários. O objetivo é chegar a mil participantes. A dificuldade será saber se o parceiro infectado eliminava quantidades altas do vírus na época do contato.

Em pesquisas anteriores, outros grupos detectaram algumas mutações genéticas que são candidatas a exercer o papel de reduzir a suscetibilidade à infecção. Uma delas seria uma mutação rara no gene ACE2, que codifica o receptor no qual o coronavírus se ancora para penetrar na célula.

Esse tipo de mecanismo foi descrito nos anos 1990, quando foi achada uma mutação rara capaz de inativar um receptor —CCR5— na membrana dos linfócitos, que o HIV utiliza para entrar na célula. É provável que a travesti do teste negativo, depois de tantos contatos sexuais, apresentasse essa mutação.

Na época, essa descoberta conduziu ao desenvolvimento de uma classe de medicamentos contra a Aids. Amplamente noticiado nos jornais foi o caso de um paciente com leucemia e Aids que recebeu um transplante de medula óssea de um doador que apresentava essa mutação no CCR5.

O paciente adquiriu a mutação do doador e ficou curado da Aids. Foi a primeira cura documentada da doença no mundo.

Outro mecanismo de resistência ao SARS-CoV-2 pode ser explicado pelo desenvolvimento de respostas imunológicas potentes, especialmente nas células que revestem as fossas nasais.

A presença de mutações nos genes dessas células poderia impedir que o vírus se instalasse e se replicasse para formar novas partículas virais.

As dificuldades de uma pesquisa como essa foram resumidas por Isabelle Meyts, imunolgista pediátrica da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica: "Se existir resistência genética ao SARS-CoV-2, deve haver apenas algumas pessoas com esses genes".

No caso da Aids as mutações em CCR5 também eram raras, mas a identificação delas levou à descoberta de medicamentos que ajudaram controlar a doença.

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