Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Elio Gaspari
Descrição de chapéu Coronavírus

O andar de cima sabia mais, e a cólera matou 10 mil pessoas na última epidemia na Europa

No século 19, negacionismo dos notáveis de Hamburgo durou pouco, até elite ser vítima da doença

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há os conservadores e há os atrasados, mas os comerciantes e banqueiros de Hamburgo achavam que eram conservadores iluminados, mas eram também atrasados.

Em agosto de 1892, a cidade era administrada pela plutocracia local. Tinha o maior porto da Alemanha e macaqueava os ingleses.

Morreu gente nos bairros pobres, mas não podia ser cólera, pois essa peste já teria sido controlada na Europa.

A cidade tinha lindos prédios, mas não havia começado a obra para tratar sua água. Em 1871 seus notáveis haviam recusado a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, porque ofenderia o direito das pessoas. (Trinta e três anos depois Rui Barbosa usou o mesmo argumento, estimulando a rebelião de alguns militares e a maior revolta popular do Rio de Janeiro.)

Tudo em nome dos princípios do liberalismo político e econômico que administrava a cidade. Os plutocratas de Hamburgo acreditavam que a cólera disseminava-se por miasmas do ambiente, mais perigosos nos bairros de gente pobre e suja.

Nove anos antes, o médico Robert Koch havia demonstrado que a cólera era transmitida por um bacilo e circulava com a água. Como eles acreditavam nos vapores, recusaram-se até a endossar a obrigatoriedade de fervê-la. (Em 1904, quando Oswaldo Cruz fumegava as casas do Rio para matar o mosquito da febre amarela, vários médicos ilustres insistiam na teoria do miasma.)

Até o verão de 1892 os plutocratas de Hamburgo entendiam que tudo dependia da higiene individual. O negacionismo dos notáveis durou pouco, até que começou a morrer gente no andar de cima.

A imprensa havia evitado o assunto e a imediata instituição de uma quarentena foi descartada, pois prejudicaria os negócios.

Quando as ruas estavam tomadas por cadáveres, o governo de Berlim mandou Robert Koch a Hamburgo e ele contou: "Senhores, eu esqueci que estava na Europa".

Oito anos antes, Nápoles, velha cidade insalubre com seu porto, havia derrubado a cólera com uma quarentena.

Uma médica americana que estava em Hamburgo escreveria: "Treze epidemias leves não haviam conseguido mostrar aos governantes da cidade que deveriam botar a casa em ordem."

A história dessa epidemia, com 10 mil mortos, foi contada pelo historiador inglês Richard Evans em "Death in Hamburg: Society and Politics in the Cholera Years, 1830"“1910" (de 1988, infelizmente só existe em papel).

Sir Richard evitou atribuir o desastre a um mero interesse econômico. Ele foi mais fundo, mostrando que as opiniões dos médicos não são autônomas, mas têm raízes e funções sociais. Os donos das teorias do miasma eram médicos, como o doutor Osmar Terra.

Aos 72 anos, numa entrevista ao repórter Isaac Chotiner, Evans rebarbou a teoria segundo a qual ditaduras e democracias lidam com epidemias de maneiras diferentes.

"[Epidemias] exigem grandes intervenções dos governos. Seja qual for a sua forma, seja qual for o tipo do Estado ou o partido que está no poder. De certa maneira, é a epidemia quem dá as cartas."

Atualmente, na praça em frente à Bolsa e à prefeitura de Hamburgo, um monumento lembra os mortos da epidemia de cólera. Ele foi esculpido em 1896.

Oito anos depois, no Brasil, ainda se falava em miasma.

O presidente Rodrigues Alves e o médico Oswaldo Cruz tiveram que enfrentar uma revolta contra a vacina obrigatória. Grande presidente, esse Rodrigues Alves.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.