Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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Esper Kallás

Tratamento precoce da Covid-19?

Diretrizes precisam respeitar o conhecimento científico já acumulado

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Durante a sessão pública da Anvisa no último domingo, quando foi aprovado o uso emergencial das vacinas contra a Covid-19, chamou atenção a menção feita pelos técnicos da agência enfatizando que não há tratamento específico para o novo coronavírus.

A constatação de que não dispomos do propalado “tratamento precoce” da Covid-19 soma-se às manifestações de várias sociedades médicas brasileiras e, agora, da Associação Médica Brasileira. Elas se alinharam a protocolos de tratamento de vários países, inclusive com as diretrizes da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas e da Organização Mundial da Saúde.

Por que, então, muitos ainda defendem o uso do “kit de tratamento precoce” da Covid-19?

Antes do avanço da pesquisa clínica, a opção pelo uso de medicamentos em medicina era ditada pela referência dos profissionais mais experientes. Um médico mais velho passava seu conhecimento ao aprendiz, até que tais recomendações fossem registradas em publicações da área.

Fomos aprendendo, ao longo de décadas, a valorizar os resultados obtidos por protocolos de pesquisa, que foram ficando cada vez mais rigorosos. Tal rigor aumentou a chance dos estudos darem respostas cada vez mais precisas.

Embora pareça óbvio, o conceito de “medicina baseada em evidências” só foi gestado na década de 1960 e se ancora no princípio de que tomadas de decisão no cuidado ao paciente sejam embasadas nas melhores evidências científicas disponíveis, com julgamento explícito e consciente. Em outras palavras, que sejam pautadas em trabalhos éticos e com metodologia rigorosa.

A Covid-19 colocou à prova tal prática. O início da pandemia foi marcado por incertezas. Médicos testemunharam, em todas as partes do mundo, a agonia dos pacientes. Sem saber como aliviar o sofrimento ou reverter as consequências da infecção, diferentes alternativas foram consideradas e estudadas.

Um ano depois, entretanto, muita coisa mudou. O volume de informações acumuladas é consideravelmente maior, inclusive sobre os estudos que abordaram o uso das medicações do “kit de tratamento precoce”. A cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no tratamento da doença. E não dispomos sequer de um único estudo convincente sobre a eficácia antiviral da ivermectina.

A situação é mais grave com o uso indiscriminado de corticoides. Muito úteis na fase mais grave da doença, que habitualmente se instala na segunda semana após o início de sintomas, podem ser prejudiciais se usados no período inicial da doença, quando podem diminuir a defesa do organismo na fase em que há maior multiplicação do vírus.

É compreensível que, no início, fossem adotados medicamentos sem benefício comprovado. Afinal, muitos pacientes estavam morrendo. Entretanto, há meses, temos dados suficientes para abandonar o uso dessas medicações, por provas contundentes de que não ajudam no tratamento e também podem estar implicadas em riscos adicionais não desprezíveis.

Aqui vale o princípio primum non nocere, ou seja, “primeiramente, não cause mal”. A possibilidade de induzir efeitos colaterais graves ou provocar interações indesejadas entre múltiplos fármacos desnecessários não pode ser menosprezada.

Já tarda a hora de nos atermos às recomendações baseadas em evidências.

Qualquer ato contrário deveria ser creditado como irresponsabilidade. Isso vale, sobretudo, para as entidades e autoridades que deveriam responder pela saúde da população.

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