Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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Vacinação em zonas de conflito

Com a guerra na Ucrânia, cabe refletir como a prevenção de doenças sofre em áreas de combate

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A poliomielite, causada por um vírus de transmissão oral, sempre foi reconhecida como uma doença catastrófica, que afeta principalmente as crianças, com paralisia e morte. Hoje é mais uma história em grande parte do mundo, mas ainda uma ameaça.

​Já temos todas as ferramentas para erradicar a doença, entre elas, duas ótimas vacinas. Conhecidas como salk e sabin, são fáceis de serem produzidas e aplicadas, principalmente a sabin. Esta vacina oral inspirou a adoção do personagem Zé Gotinha, marca registrada das campanhas de vacinação pelo Brasil.

Por que, então, ainda não foi erradicada? Sua transmissão ainda é perene (epidemiologistas usam o termo endêmica) somente no Paquistão e no Afeganistão, especialmente ao redor da fronteira entre os dois países, que sofre com conflitos há muito tempo. Casos isolados ou surtos ocorrem também em vários países da África, além de Iêmen, Tadjiquistão e Ucrânia.

Imagem em close mostra as mãos de uma profissional da saúde espetando uma seringa em uma ampola de vacina contra Covid
Profissional de saúde prepara dose de vacina contra a Covid-19 - Daniel Ramalho - 31.dez.2021/AFP

Embora a pobreza e a falta de estrutura tenham impacto significativo na transmissão, chama a atenção a superposição das regiões de conflito com os locais onde ainda ocorrem os casos da doença.

Outro exemplo é o cólera, causado por bactéria transmitida pela água ou alimentos contaminados, considerado um barômetro para detectar condições precárias de saneamento. É o que aconteceu na Síria, onde a doença matou principalmente crianças de regiões envolvidas na guerra civil, com a maioria dos casos no meio da década passada.

Ações pontuais também tiveram grande repercussão, como na caçada a Bin Laden. Agentes disfarçados de profissionais de saúde coletaram amostras de DNA de bebês no leste do Paquistão, durante campanha de vacinação para hepatite B, a fim de localizar parentes de Bin Laden, baseando-se no DNA de sua irmã falecida nos EUA. Isso provocou retaliações contra profissionais de saúde locais com aumento de hesitação e desconfiança à vacinação, com queda significativa da adesão às imunizações.

Em 2016, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a proteção aos serviços de saúde em áreas de conflitos como uma lei humanitária, cujo desrespeito pode ser definido como crime. "Mesmo as guerras precisam seguir regras", lembrou o então secretário-geral, Ban Ki-moon.

O que acontecerá com a Covid-19 com a guerra na Ucrânia? O caos terá consequências devastadoras para o sistema de saúde, com provável paralisação das vacinações. Quando correr para salvar suas vidas é a única opção, todas as outras medidas restritivas, como o uso de máscaras e distanciamento social, passam a ser praticamente impossíveis, frente às necessidades básicas da imensa massa migratória.

Campos de refugiados devem ser focos de transmissão, tanto do coronavírus como de outros germes preveníveis. O que traz mais complexidade para as ações de auxílio humanitário, pois não basta oferecer abrigo e suprimentos. Estratégias de prevenção de doenças precisam fazer parte.

Os desafios se multiplicam com as notícias falsas. No Afeganistão, chegou-se a propagar que mulheres ficariam estéreis caso recebessem vacinas. Com a Covid-19, há inúmeras teorias conspiratórias, mesmo em locais com recursos, infraestrutura e programas bem planejados. O que esperar em regiões com refugiados, no meio da guerra de informações provocada pelos conflitos?

São enormes os desafios.

Embora, historicamente, o número de conflitos tenha diminuído, não há perspectiva de que acabem. Resta continuar criando regras e planos de emergência para enfrentar doenças infecciosas em regiões de conflito armado.

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