Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Descrição de chapéu Folhajus

Como reconstruir as regras da Suprema Corte dos EUA numa era polarizada?

Como fazer com que a instituição modere nossos conflitos políticos em vez de acentuá-los?

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Desde que a decisão do caso Dobbs foi tomada, o que acabou derrubando o direito ao aborto nos EUA, ouvi muitos progressistas lamentarem o roubo da Suprema Corte pelos republicanos. Segundo a história, Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado, roubou a maioria quando se recusou a dar a Merrick Garland uma mera audiência em 2016, mantendo a vaga aberta até que Donald Trump assumisse.

A justificativa de McConnell foi seu profundo compromisso com a democracia com "d" minúsculo: nenhuma vaga deve ser preenchida em ano de eleição presidencial; a população deve ter uma chance de opinar. Em 2020, ele queimou esse princípio inventado e se apressou a confirmar Amy Coney Barrett para substituir Ruth Bader Ginsburg. A votação sobre a indicação de Barrett ocorreu oito dias antes da eleição.

A sede da Suprema Corte dos EUA, em Washington
A sede da Suprema Corte dos EUA, em Washington - Kevin Dietsch - 30.jun.22/Getty Images/AFP

McConnell enganou o país, mas não roubou nenhum assento. Nada do que ele fez foi contra as regras, razão pela qual os democratas se viram impotentes para detê-lo. Os progressistas, enraivecidos, muitas vezes ignoraram a lógica dos atos de McConnell. Ele entendeu o que muitos ignoraram: a era das normas acabou nos Estados Unidos. Esta é a era do poder. E há uma razão para isso.

A Suprema Corte mudou. Nos anos 1950 e 1960, era difícil inferir o histórico político de um juiz a partir de seus votos, como mostra uma análise de Lee Epstein e Eric Posner. Na década de 1990, Byron White, um nomeado democrata, tinha histórico de votação mais conservador do que todos, exceto dois dos juízes nomeados pelos republicanos –Antonin Scalia e William Rehnquist. John Paul Stevens, uma âncora da ala progressista do tribunal até sua aposentadoria, em 2010, foi nomeado por Gerald Ford, um republicano.

Mas esse histórico de independência foi entendido, pelos partidos que o produziram, como um histórico de fracasso. O processo de verificação pelo qual os indicados são escolhidos foi reformulado para garantir a previsibilidade ideológica. Nos últimos anos, "os juízes quase nunca votaram contra a ideologia do presidente que os nomeou", concluem Epstein e Posner.

Estou obcecado, para dizer o mínimo, pelo modo como a polarização ideológica está se chocando com as instituições políticas peculiares dos Estados Unidos. Escrevi um livro inteiro sobre isso. Nosso sistema político não é projetado para partidos políticos tão diferentes e tão antagônicos. Não foi projetado para partidos políticos. Os três ramos do nosso sistema tinham como objetivo controlar as respectivas atuações por meio da competição. Em vez disso, os partidos competem e cooperam entre os ramos, e o poder de um pode ser usado para aumentar o poder de outro –como McConnell bem entendeu.

A Suprema Corte é uma instituição estranha —a palavra final sobre a lei, mas sem meios para impor suas decisões; claramente política, mas supostamente acima da política; composta por nove indivíduos briguentos, mas posando como a voz imparcial da Constituição–, e nós encobrimos suas peculiaridades com tradições de continuidade e moderação. Pedimos aos senadores que julguem os indicados por suas qualificações, não por suas ideias. Pedimos aos juízes que endossem decisões anteriores que eles consideram erradas, até mesmo imorais. Pelo menos, fazíamos isso. Nos últimos anos, a importância política do tribunal predominou sobre as normas que o isolavam (um pouco) da política.

Como escrevi em meu livro, "talvez não haja um único voto que os membros do Senado dos EUA encarem com tanta importância ideológica em longo prazo quanto o de uma nomeação vitalícia para a Suprema Corte, e pedir-lhes que mantenham esse voto, e somente esse, à parte das promessas ideológicas que eles fazem a seus eleitores e a si mesmos, é bizarro".

A antiga norma funcionava quando o conflito partidário era moderado o suficiente para criar um tribunal que parecia, e talvez fosse, majoritariamente apartidário. Mas esses dias acabaram faz tempo. Para piorar, a Suprema Corte passou de ademocrática a antidemocrática. As nomeações vitalícias são duvidosas nas melhores circunstâncias, mas a aleatoriedade das aposentadorias e mortes deu aos republicanos um controle que zomba da vontade pública. Cinco dos seis juízes republicanos do tribunal foram nomeados por presidentes que inicialmente assumiram o cargo depois de perder o voto popular (e, no caso de George W. Bush, depois da intercessão direta de cinco dos conservadores do tribunal, no caso Bush vs. Gore). Trump conseguiu fazer mais nomeações em um só mandato do que Barack Obama em dois.

Você pode pensar que a natureza minoritária desta corte produziria uma maioria contida, temerosa de conflitos com a opinião pública. Mas não. A enxurrada de decisões, concordâncias e dissidências do caso Dobbs tem menos a ver com aborto e direitos do que se poderia esperar. Grande parte do texto debate o princípio jurídico do "stare decisis", que orienta o tribunal a respeitar precedentes ao tomar decisões.

O "stare decisis" serve para resolver um problema específico da Suprema Corte, que deve provar ser uma instituição que opera ao longo do tempo, não apenas um amálgama de nove vozes em um determinado momento. Quando resiste ao impulso de derrubar antigas decisões, o tribunal reforça uma continuidade que supera o que as opiniões de seus membros ofereceriam. Roe vs. Wade já foi revista na decisão do caso Casey, em 1992, e na maior parte mantida. Sob as normas que governam o tribunal há décadas, Roe deveria estar segura, não porque a maioria concorde com ela hoje, mas porque a Suprema Corte não derruba uma lei estabelecida com base no que a maioria acredita hoje.

Este é o tema da confirmação desapontada do presidente do tribunal, John Roberts: "Certamente, devemos aderir estreitamente aqui aos princípios de contenção judicial, em que o caminho geral que o tribunal escolhe implica repudiar um direito constitucional que não apenas reconhecemos anteriormente, como também reafirmamos expressamente, aplicando a doutrina do 'stare decisis'".

A discordância dos progressistas vibra com uma raiva ainda mais profunda: "Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, o tribunal precisa aplicar a lei –particularmente a lei do 'stare decisis'".

Mas "stare decisis", como os juízes sabem muito melhor que eu, não é uma lei. E, assim, em sua opinião majoritária, Samuel Alito a repudia. "É importante que a população perceba que nossas decisões se baseiam em princípios, e devemos fazer todos os esforços para atingir esse objetivo emitindo pareceres que mostrem cuidadosamente como uma compreensão adequada da lei leva aos resultados a que chegamos", escreveu ele. "Mas não podemos exceder o escopo de nossa autoridade sob a Constituição, e não podemos permitir que nossas decisões sejam afetadas por quaisquer influências estranhas, como a preocupação com a reação do público ao nosso trabalho."

O argumento que Alito apresenta ao longo de sua opinião é simples: o tribunal pode errar. Quando erra, deve se corrigir. Deem todos os argumentos elaborados sobre "stare decisis" que quiserem, mas se uma decisão está errada, está errada, e deve ser revista. Adotando a perspectiva dele por um momento: há algo de enlouquecedor em ser nomeado para uma cadeira na mais alta corte do país, mas ser instruído a manter as decisões que você e quatro de seus colegas consideram mais nocivas.

Em certo nível, ele tem razão. A "stare decisis" faz pouco sentido. O problema é que, sem ela, a própria Suprema Corte faz ainda menos sentido. São apenas nove nomeados políticos fantasiados à procura dos votos de que precisam para obter os resultados que desejam. E quanto mais avançamos nesse caminho, mais a mística que sustenta a corte se dissolve. Não há nenhuma regra, na verdade, de que a Suprema Corte deva ser obedecida como a última palavra na interpretação da Constituição –isso também é uma norma, e o tribunal não tem poder para fazer com que seja cumprida. Se tudo o que resta à Suprema Corte são as regras, em breve não haverá uma Suprema Corte, propriamente.

Então, como seria reconstruir as regras e as normas da Suprema Corte para que fizessem sentido em uma era polarizada –para que possa ser uma instituição que modere nossos conflitos políticos em vez de acentuá-los? Recentemente, houve um esforço amplo e importante, que recebeu pouca atenção, para se refletir sobre essa questão. Será o assunto da minha próxima coluna.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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