Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Limpar a própria sujeira é uma lição política

Ideia de que alguém vai cuidar do que é essencial para a vida doméstica funcionar repercute na nossa vida pública

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Seis meses de vida familiar, profissional, acadêmica e doméstica nos EUA evidenciaram algo que a rotina de privilégios da elite brasileira (categoria na qual me incluo) oculta: dar conta da própria existência, de cabo a rabo, dá muito trabalho e toma bastante tempo.

No meu caso: providenciar alimento para quatro e roupas limpas para quatro, dar banho em duas, para além de si própria, e manter a casa limpa e organizada (o que, não dá para fugir, inclui encarar banheiro e cozinha com intensa regularidade) cansa --ainda que as tarefas sejam compartilhadas, como manda o figurino da família moderna.

Sem ao menos aquela faxina-mágica semanal paga, que encaramos quase como um direito adquirido, o grau de exigência doméstica arrefece na mesma medida em que aumenta a consciência do tempo e empenho necessários para que a vida funcione em seus aspectos mais elementares, sem os quais todo o resto fica comprometido.

 

Por isso, o contrato de serviços domésticos de cozinha, lavanderia e cuidados com os filhos são abstrações para boa parte dos meus amigos e conhecidos estrangeiros do hemisfério Norte tanto quanto o são estendidas jornadas de trabalho que tomam o tempo de tudo-aquilo-o-que-precisa-ser-feito.

No Brasil, o pressuposto das elites é que trabalho e diversão não têm fronteiras porque existe alguém (às vezes no plural) passando um pano pra você em casa. Quiçá pra sua família toda.

O Brasil tem 6,2 milhões de trabalhadores domésticos, segundo o IBGE. Ainda que a maior parte dos brasileiros não tenha acesso a este tipo de serviço, o número é expressivo.

Os EUA têm cerca de 2 milhões de trabalhadores domésticos, quantidade que fica ainda menor diante de uma população americana 56% maior que a nossa.

No México, o trabalho doméstico é mais comum. São 2,4 milhões de pessoas no ramo para uma população 40% menor que a brasileira e 62% menor que a norte-americana.

Ao expor o cotidiano de uma indígena trabalhadora doméstica no México dos anos 1970, o filme “Roma”, vencedor de três estatuetas do Oscar deste ano, levantou o debate sobre a dependência das elites deste tipo de serviço e sua paradoxal precariedade.

Nós, brasileiros, somos líderes globais nesse tipo de atividade precária, vulnerável a abusos físicos e financeiros, em que predominam mulheres (92%) negras (61%) e de baixa escolaridade (52% não completaram o ensino fundamental).

Trata-se, ao mesmo tempo, de herança da nossa Casa-Grande e Senzala, de índice de deterioração de oportunidades de trabalho (uma marca da já fraca retomada do emprego), e de signo da nossa desigualdade.

Difícil imaginar que esse nosso traço social não extrapole o âmbito da vida privada. Ao repercutir na dimensão pública, a negligência daquilo que existe de mais básico dá contorno à nossa democracia.

Na esfera política brasileira, de acordo com essa lógica, não seria necessário se embrenhar na cozinha, improvisar um conserto ou limpar a própria sujeira.

Não seria preciso empenhar seu tempo ou esforço para garantir o funcionamento do que é primordial para a sobrevivência e o bem-estar. Afinal, alguém vai cuidar disso pra você.

A montanha-russa política brasileira, a falta de perspectiva para a juventude brasileira, a crise econômica, a legislação em causa própria e as mamatas nos três poderes (aumentos salariais, benefícios esdrúxulos, férias para dar e vender, entre outros) sugerem o descontrole social.

Assumir responsabilidade por nossa vida privada, portanto, pode ter reflexo na vida pública, nos levando a nos envolvermos com a faxina e o alimento do nosso país de maneira mais frequente e direta que o mero digitar dos números de um partido ou candidato a cada quatro anos.

É assim que limpar a própria sujeira pode nos ajudar a melhorar a nossa democracia.

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