Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Caso Marielle expõe as entranhas do poder

Poderio de milícias, suspeitas de envolvimento no crime, emana de estruturas legais e ilegais

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A ciência criminal preconiza que, à medida que o tempo passa, a resolução de um assassinato se torna mais e mais difícil: evidências tendem a desaparecer ou ser apagadas, assim como a disposição de testemunhas em colaborar com as investigações.

Sob este princípio, é contraintuitiva a prisão de dois suspeitos de serem os executores do atentado que matou a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, quase um ano depois do crime.

O policial reformado Ronaldo Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz foram presos na manhã desta terça (12). Lessa, suspeito de ser o autor dos 13 disparos, dos quais quatro acertaram a cabeça da vereadora em 14 de março passado, foi preso em sua casa, no mesmo condomínio da Barra da Tijuca onde o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem casa.

O ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, preso nesta terça (12) por envolvimento no assassinato de Marielle, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (PSL)
O ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, preso por suspeita de envolvimento no assassinato de Marielle Franco, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (PSL) - Reprodução/Facebook

Confirmada a suspeita, falta à investigação apontar quem foi o mandante do brutal assassinato de uma parlamentar e defensora de direitos humanos, ocorrido logo após o início da intervenção federal no estado do Rio, que colocou o Exército no comando da segurança pública fluminense. Um vexame.

A chave para a ausência de um desfecho consolidado, passados 12 meses, no entanto, é evidência da escalada de poder das milícias no país, de acordo com o sociólogo José Cláudio Souza Alves, autor do estudo “Dos Barões ao Extermínio: a História da Violência na Baixada Fluminense” (Ed. Sepe).

Souza Alves pesquisa milícias da Baixada Fluminense há 26 anos e explica que os grupos de extermínio da região estão na origem dessas organizações e que seu poderio emana de uma dupla vinculação: tanto com estruturas legais como com aquelas ilegais.

Formados em boa parte por policiais e ex-policiais, as milícias conquistaram dimensão política ao eleger representantes e obter nomeações para postos estratégicos que beneficiam seus esquemas. O relatório da CPI das milícias já apontava para sete políticos envolvidos com essas organizações criminosas. Ao menos cinco foram presos.

Para Souza Alves, é a ligação com o Estado que garante às milícias “poder, informação, proteção e impunidade”. “Milícias não são um Estado paralelo. Elas são o próprio Estado.”

O caso Marielle e Anderson, em que as milícias parecem estar em todas as pontas, pode ilustrar essa premissa.

Um delator, considerado testemunha-chave do caso, apontou o vereador Marcello Siciliano (PHS) e o miliciano Orlando Curicica, hoje num presídio de segurança máxima, como mandantes do crime. Eles negaram a acusação, e chegaram a procurar a Anistia Internacional dizendo-se pressionados a assumir o duplo assassinato.

O então secretário de Segurança do Rio, general Richard Nunes, também chegou a afirmar que Marielle teria sido morta por supostamente ameaçar o esquema de grilagem de terras operado por uma milícia na zona oeste do Rio.

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), escreveu em seu perfil numa rede social que um dos cinco presos na operação “Os Intocáveis”, deflagrada em janeiro deste ano pela Polícia Civil e Ministério Público, era suspeito de envolvimento nas mortes de Marielle e de Anderson.

A operação teve como alvo milicianos que atuam na grilagem de terras na zona oeste do Rio de Janeiro. Surpreendente é o fato de dois dos alvos da operação terem sido homenageados pelo então deputado Flávio Bolsonaro (PSL) com moção de louvor e honrarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

Um deles, o ex-capitão da PM Adriano Magalhães Nóbrega, hoje foragido, foi apontado pela operação como um dos líderes da milícia de Rio das Pedras que opera esquema de grilagem de terras, entre muitos outros. Ele também seria chefe do grupo de extermínio Escritório do Crime, suspeito de estar associado à execução de Marielle e Anderson.

Nóbrega foi celebrado pelo hoje senador Flávio Bolsonaro com moção de louvor por seu “brilhantismo e galhardia”, em 2003, e com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Alerj, em 2005.

Mais: até novembro do ano passado, a mãe e a mulher de Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro, que atribuiu as contratações a seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, amigo de longa data do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL).

Queiroz, que foi policial militar, já estava sujo. Ele é suspeito de comandar rachadinhas no gabinete do filho zero um do presidente. O esquema retém parte dos salários de funcionários nomeados de um gabinete. Queiroz atribuiu a movimentação de R$ 7 milhões, valor incompatível com sua renda, a negócios particulares de compra e venda de automóveis.

O jogo de empurra-empurra e esconde-esconde, no entanto, não desata o nó que amarrou milicianos suspeitos de envolvimento na morte da vereadora com o gabinete do filho do presidente da República.

Em dezembro passado —portanto, antes de o Brasil conhecer Queiroz, Nóbrega e o Escritório do Crime—, a suspeita de que uma organização criminosa estivesse travando as investigações do atentado que matou a vereadora e seu motorista levaram a Polícia Federal a entrar no caso.

Na ocasião, o então ministro da Segurança Raul Jungmann definiu o processo de apuração do crime como “uma aliança satânica entre a corrupção e o crime organizado”.

Se a morte de Marielle Franco já era um caso de interesse nacional antes de reveladas as tenebrosas relações entre milicianos e o filho zero um do presidente, agora sua resolução deveria ser também questão pessoal e de honra para a família Bolsonaro.

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