Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Em país com 56% de negros, secretário quer cultura alinhada 'à civilização judaico-cristã'

Discurso de Roberto Alvim remete à campanha contra a arte moderna, dita 'degenerada'

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Em 1999, estive na cidade de Weimar, na antiga Alemanha Oriental, e visitei a primeira exibição pública da coleção de pinturas de Adolf Hitler

Eram 120 quadros que haviam sido encontrados por soldados norte-americanos num túnel de uma ferrovia na Áustria em 1949, e que nunca tinham vindo a público nos 50 anos seguintes.

Os quadros retratavam paisagens e cenas tão convencionais quanto tediosas, com montanhas e vales, mitos gregos e pastores felizes. As pinturas pareciam especialmente enfadonhas quando comparadas às obras contemporâneas de artistas modernos, cuja produção foi classificada pelo partido nazista como "arte degenerada", e que ocupavam o mesmo espaço expositivo num antigo prédio de linhas retas da cidade natal do maior poeta alemão, Goethe

É preciso lembrar que o regime nazista deflagrou uma campanha contra a arte moderna. Pinturas, gravuras e esculturas de modernistas consagrados internacionalmente, como Paul Klee, Wassily Kandinsky, Marc Chagall e Lasar Segall, foram banidos de museus e instituições públicas da Alemanha. E os modernistas sofreram sanções por parte do regime, perdendo cargos em instituições de ensino.

A política cultural nazista se inspirou no livro do arquiteto e teórico racista Paul Schultze-Naumburg intitulado "Arte e Raça", que defendia que apenas artistas de uma "raça pura" poderiam produzir obras atemporais e de beleza clássica. Qualquer coisa que fugisse a padrões de representação que valorizam o equilíbrio, a harmonia e a perfeição técnica era considerado um "insulto" ao espírito alemão.

Trata-se de um contexto em que a censura foi em parte justificada pela falsa polarização entre o belo e o "degenerado", gerando um dos momentos mais sombrios da história da cultura (e da civilização).

Causa estranheza, portanto, o discurso do atual secretário da Cultura, Roberto Alvim, proferido nesta terça-feira na conferência anual da Unesco, em Paris. 

"Estamos comprometidos com a redefinição da identidade e da sensibilidade nacionais, em consonância com os valores e mitos fundantes de nossa nação", discursou, como se tivesse saído de um túnel do tempo.

"A arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista, um projeto mesquinho que perseguiu e marginalizou a autêntica pluralidade artística de nossa nação", declarou, decretando que "quando a arte e a cultura adoecem, o povo adoece junto". 

O secretário do governo de Jair Bolsonaro disse que vai formar novos gestores e artistas para "a nobre edificação da nossa civilização brasileira". Tudo por considerar que a arte e a cultura produzidos nos últimos 20 anos no país teriam se tornado meios "de propagação de uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do nosso povo". 

Com base em qual referendo ele conclui que a produção cultural desagrada à maioria da população é o que Alvim precisa explicar. 

Num país em que 56% das pessoas se autodeclaram negras e no qual florescem movimentos de valorização das culturas afro-brasileiras, Alvim discursou sobre "promover uma cultura alinhada às grandes realizações da nossa civilização judaico-cristã". Em que Brasil ele vive?

O secretário, que exaltou "o amor aos clássicos", afirmou que "com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, os valores ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade encontraram uma nova atmosfera".

É preciso lembrá-lo que o Brasil de 2019 tem 209 milhões de valores ancestrais, elegâncias, belezas e transcendências, e que todos têm igual direito a produzir e a consumir a arte que lhes convêm, seja ela clássica, contemporânea, marginal ou qual for.

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