Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Mena
Descrição de chapéu Coronavírus

Os 10 mandamentos da pandemia de coronavírus

Grande paralisação evidencia a interdependência humana e a importância da ciência, do Estado, do saneamento básico e do mandarim

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

1. Não matarás

O primeiro mandamento diz respeito àquilo que realmente importa e que a Covid-19 ameaça: a vida. O fato de o vírus ser altamente contagioso revelou o grau de interdependência das pessoas nas sociedades urbanizadas, algo que ignorávamos ou menosprezávamos.

De repente, a vida do outro está intimamente ligada à minha porque todos somos vetores potenciais do novo vírus (menos o presidente, é claro!).

Sair ou não de casa se tornou uma questão de segurança individual e familiar mas também uma questão ética, baseada na consciência da existência do outro. Afinal, quem sou eu para colocar em risco outra vida?

Num país que colecionava recordes de homicídios, com mais de 60 mil mortes violentas intencionais ao ano, a valorização da vida é um negócio que desce quadrado. Prova disso são as carreatas da morte: ao protestar contra o distanciamento social, chamam as pessoas para a rua e, portanto, para duplo risco de matar ou morrer.

2. Se possível, trabalharás de casa

Para quem nunca fez o chamado home office, trabalhar de casa, assim, de repente, pode mais parecer uma gincana. E é.

Regular o tempo, a atenção e o esforço dedicados aos afazeres remunerados e àqueles da inescapável demanda doméstica é desafiante. Mas o embaralhamento entre vida privada e profissional parece ser um caminho sem volta.

3. Não levantarás falso testemunho contra o papel do Estado na economia

Quando a bolsa de São Paulo passou a ter suas operações interrompidas seguidas vezes e partes da indústria e do setor de serviços fecharam as portas para conter a epidemia, magos do sistema financeiro e defensores do livre mercado vieram a público pedir atuação do Estado para garantir o funcionamento da economia.

Ué, mas se o Estado for mínimo, como tantos neoliberais defendem, como ele pode encarar um desafio gigante como o atual?

Cada vez mais economistas das mais variadas vertentes discutem a possibilidade de se estabelecer uma renda mínima universal como forma de garantir a sobrevivência e a dignidade de todos os cidadãos.

4. Não disseminarás fake news

A versão pós-pandêmica do "Não adulterarás" surge quando redes de comunicação instantânea já conectaram metade da população do planeta. E todo e qualquer indivíduo pode produzir e divulgar informações tanto quanto consumi-las —algo tão incrível quanto assustador.

As tecnologias de manipulação de som e imagem se aperfeiçoaram a ponto de permitir falsificações tão impressionantes quanto as deep fakes. As técnicas de propagação de mensagens por meio de disparos em massa se popularizaram, gerando campanhas de desinformação.

Neste contexto, tornam-se cada vez mais importantes o jornalismo profissional, os serviços de checagem de informação e o hábito de pesquisar informações sem lastro antes de apertar o botão "encaminhar".

5. Honrarás a ciência

Médicos, epidemiologistas, matemáticos, biólogos e tantos outros cientistas estão envolvidos tanto nas estratégias de prevenção da epidemia de coronavírus quanto na busca por vacinas e medicamentos eficazes contra a Covid-19.

Se fica evidente a importância da ciência para a humanidade, também é claro que ela está sob ataque no Brasil, seja pelo negacionismo das lideranças de hoje, que defendem de terra-planismo ao criacionismo, seja pelo sistemático corte de verbas do setor.

O orçamento federal para a ciência caiu para menos da metade do que era em 2012. Universidades federais e bolsas de pesquisa também vivem à míngua. E uma das principais agências de fomento, a Capes, cortou quase 12 mil bolsas em 2019. Em seguida, a instituição ganhou um presidente criacionista. Seria piada se não fosse verdade.

A economia do conhecimento e da inovação é o futuro. O fato de o Brasil ser (ainda) a oitava economia do mundo mas ocupar o 66° lugar no Índice Global de Inovação indica que não estamos bem preparados para ele.

6. Fugere urbem

Qual é a vantagem de se viver empilhado ou espremido? De estar majoritariamente em espaços confinados? De respirar um ar poluído (destaque para a reversão deste fator desde o início da Grande Paralisação)?

As vantagens da vida social e cultural que as megalópoles oferecem, além de maior oferta de trabalho e da possibilidade do anonimato, parecem diminuir no mesmo ritmo em que suas ruas se esvaziam durante a necessária estratégia de distanciamento social para conter a pandemia do coronavírus.

Sem usufruir das vantagens das grandes cidades, ficam claras as suas desvantagens.

7. Manterás a saúde do sistema público de saúde

Os sistemas de saúde de muitos países estariam mais bem preparados para a crise do coronavírus antes do início das políticas de austeridade que fizeram Estados enxugarem seus orçamentos. Enquanto a média de gastos com saúde dos países membros da OCDE em 2017 era de 6,5% do PIB, no Brasil a proporção era de apenas 3,9%.

Durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), caiu o número de médicos da atenção básica e aumentou a mortalidade infantil, sinal de alerta para qualquer país que se preze.

8. Lavarás as mãos constantemente. Mas como?

A essa altura, é um mandamento autoexplicativo. Com sabão, não custa lembrar. A consolidação deste hábito seria o grande legado da pandemia para os brasileiros se todos tivessem acesso a água e sabão. A lenta evolução do saneamento básico no Brasil deixa claro que o tema não é prioridade, ainda que seja essencial à vida.

Em Rondônia, apenas 43% da população tem acesso a água encanada. Nas favelas, onde vivem 13,6 milhões de brasileiros, é comum não haver água nem coleta de esgoto, meio pelo qual o coronavírus também é transmitido.

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância, 40% da população global não têm lavatório em casa e apenas três de cada cinco pessoas do planeta têm acesso a instalações básicas para lavar as mãos.

9. Cobrirás a boca com o braço ou um lenço ao tossir

Pouco mais de um ano atrás, vivi uma temporada em Chicago, nos EUA. Com a chegada do inverno, me chamou a atenção que pessoas levassem a dobra do cotovelo ao rosto para tossir ou literalmente levantassem o braço para tossir na axila ou ainda enfiassem o rosto gola da blusa adentro na hora da tosse.

Trata-se de um hábito que, confesso, nunca tinha visto no Brasil e que também se mostrou um sinal do nosso atraso e da falta de respeito com o próximo.

Isso porque se tornou evidente que tossir sem cobrir o rosto lança um spray de saliva no ar. E, com ele, o microorganismo da vez.

Cobrir a boca com as mãos, um hábito considerado polido por aqui, nada mais faz do que trocar o spray de vírus por um carimbo viral, à medida que esa mesma mão sai da boca para tocar algo ou alguém.

10. Aprenderás mandarim

O papel da China na disseminação do vírus tem sido questionada por Estados Unidos, França e Reino Unido, incomodados que estão com aviões chineses fornecendo máscaras e respiradouros mundo afora.

Trata-se tanto de uma estratégia muito bem-sucedida de “soft power” quanto de uma demonstração de poder: o "made in China" se tornou essencial ao mundo de quem o gigante asiático compra insumos e para o qual vende manufaturados.

Enquanto o eixo de poder global parece se deslocar na direção da China, o mandarim se torna uma língua de peso para negócios, estudos e diplomacia.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.