Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Como o coronavírus pode arruinar relações

O que sobreviveu à polarização política brasileira pode agora sucumbir ao medo, à desconfiança e ao julgamento que emergiram com a pandemia

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São Paulo

Muito se tem falado sobre os desafios da convivência intramuros durante a pandemia, em que marido, mulher e filhos têm sido obrigados a ajustar os ponteiros na marra.

Na China, desde o relaxamento do "lockdown" —a medida extrema de confinamento para prevenção do contágio por coronavírus— os pedidos de divórcio vêm batendo recordes.

Mas existe um outro impacto da Covid-19 que ainda não foi dimensionado: o efeito da aderência às estratégias de distanciamento social determinadas pelas autoridades sanitárias nas relações pessoais, o que tem provocado medo, angústia, vergonha e julgamentos.

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Projeção de obra do artista Felipe Morozini em empena cega na região central de São Paulo, durante período de distanciamento social pela pandemia de coronavírus - Acervo Pessoal

Com isso, os relacionamentos que sobreviveram à polarização política brasileira dos últimos sete anos correm agora o risco de sucumbir diante da ameaça da Covid-19.

Isso porque, quando alguém chama você para um churrasco no auge da campanha #fiqueemcasa, fica a dúvida: a pessoa não está nem aí para o outro mesmo ou ela ainda não entendeu do que se trata?

Vale lembrar: trata-se do aumento da circulação do vírus que acelera a incidência de doentes graves, sobrecarregando UTIs a ponto de impedir o atendimento, provocando mais mortes.

Nesse contexto, a festinha que você ouve no casa do vizinho, mesmo com música boa e horário civilizado, também causa certo mal-estar. E, depois dela, fica difícil achar aquele jovem casal que mora ao lado tão simpático como antes.

O caso emblemático e extremo, ainda que impessoal, é o da blogueira Gabriela Pugliese e seus 4,4 milhões de seguidores. Ela deu uma festinha em plena quarentena, da qual postou um vídeo dizendo "Foda-se a vida" e perdeu estimados R$ 3 milhões em patrocínios.

O que está oculto na frase da blogueira é de quem é a vida: "dos outros". Foda-se a vida dos outros.

Ela já havia testado positivo para coronavírus. E talvez não seja coincidência o fato de ter contraído a Covid-19 ao mesmo tempo que outras celebridades presentes no casamento de sua irmã, uma festa cinematográfica no Sul da Bahia apontada como um dos eventos que primeiro disseminaram o coronavírus no Brasil.

Nos circuitos mais íntimos, há situações tão diversas quanto complexas. Uma amiga revira os olhos toda vez que sua mãe insinua ser exagero não poder visitar o neto durante a quarentena. Outra encara a batalha de suspender as visitas dos filhos ao pai porque a ex-sogra, com quem ele vive, tem ido à casa de diversos parentes como se não houvesse amanhã.

Com a recente escalada de contágio e mortes por Covid-19 no Brasil, um dos países onde a doença mais avança, o distanciamento social pode durar mais, assim como a questão ética que ele carrega em relação ao outro.

Para resolver os impasses intramuros, empresários do ramo imobiliário do Japão passaram a oferecer diárias de apartamentos mobiliados para cônjuges desesperados por algum tempo de distanciamento marital.

Para resolver os impasses coletivos provenientes da desobediência ao distanciamento social, alguns países recorreram a multas e polícia, e alguns indivíduos, à crítica, ao rompimento ou ao afastamento.

Passada a pandemia —que um dia irá passar—, será que o medo do outro e o juízo negativo daqueles que, aos nossos olhos, se comportaram mal durante a pandemia também passarão? Ou eles apenas serão somados aos escombros de nossas velhas relações?

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