Muito se tem falado sobre os desafios da convivência intramuros durante a pandemia, em que marido, mulher e filhos têm sido obrigados a ajustar os ponteiros na marra.
Na China, desde o relaxamento do "lockdown" —a medida extrema de confinamento para prevenção do contágio por coronavírus— os pedidos de divórcio vêm batendo recordes.
Mas existe um outro impacto da Covid-19 que ainda não foi dimensionado: o efeito da aderência às estratégias de distanciamento social determinadas pelas autoridades sanitárias nas relações pessoais, o que tem provocado medo, angústia, vergonha e julgamentos.
Com isso, os relacionamentos que sobreviveram à polarização política brasileira dos últimos sete anos correm agora o risco de sucumbir diante da ameaça da Covid-19.
Isso porque, quando alguém chama você para um churrasco no auge da campanha #fiqueemcasa, fica a dúvida: a pessoa não está nem aí para o outro mesmo ou ela ainda não entendeu do que se trata?
Vale lembrar: trata-se do aumento da circulação do vírus que acelera a incidência de doentes graves, sobrecarregando UTIs a ponto de impedir o atendimento, provocando mais mortes.
Nesse contexto, a festinha que você ouve no casa do vizinho, mesmo com música boa e horário civilizado, também causa certo mal-estar. E, depois dela, fica difícil achar aquele jovem casal que mora ao lado tão simpático como antes.
O caso emblemático e extremo, ainda que impessoal, é o da blogueira Gabriela Pugliese e seus 4,4 milhões de seguidores. Ela deu uma festinha em plena quarentena, da qual postou um vídeo dizendo "Foda-se a vida" e perdeu estimados R$ 3 milhões em patrocínios.
O que está oculto na frase da blogueira é de quem é a vida: "dos outros". Foda-se a vida dos outros.
Ela já havia testado positivo para coronavírus. E talvez não seja coincidência o fato de ter contraído a Covid-19 ao mesmo tempo que outras celebridades presentes no casamento de sua irmã, uma festa cinematográfica no Sul da Bahia apontada como um dos eventos que primeiro disseminaram o coronavírus no Brasil.
Nos circuitos mais íntimos, há situações tão diversas quanto complexas. Uma amiga revira os olhos toda vez que sua mãe insinua ser exagero não poder visitar o neto durante a quarentena. Outra encara a batalha de suspender as visitas dos filhos ao pai porque a ex-sogra, com quem ele vive, tem ido à casa de diversos parentes como se não houvesse amanhã.
Com a recente escalada de contágio e mortes por Covid-19 no Brasil, um dos países onde a doença mais avança, o distanciamento social pode durar mais, assim como a questão ética que ele carrega em relação ao outro.
Para resolver os impasses intramuros, empresários do ramo imobiliário do Japão passaram a oferecer diárias de apartamentos mobiliados para cônjuges desesperados por algum tempo de distanciamento marital.
Para resolver os impasses coletivos provenientes da desobediência ao distanciamento social, alguns países recorreram a multas e polícia, e alguns indivíduos, à crítica, ao rompimento ou ao afastamento.
Passada a pandemia —que um dia irá passar—, será que o medo do outro e o juízo negativo daqueles que, aos nossos olhos, se comportaram mal durante a pandemia também passarão? Ou eles apenas serão somados aos escombros de nossas velhas relações?
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.