Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Deus é química

"Deus É química" é a epígrafe com que o bioquímico e citologista, Prêmio Nobel de medicina de 1974, Christian de Duve abre "Poeira Vital" —tratado sobre a evolução da vida na Terra, desde o advento das primeiras moléculas orgânicas até a formação de seres complexos, como nós.

De Duve faz parte da corrente científica que acredita que a vida é um imperativo cósmico e não um acaso improvável do Universo.

Li a obra do belga como quem devora um romance do século 19. A avidez com que uma enzima funde um açúcar a uma base, o anseio de existir e o estado de atenção e urgência da sopa primordial são comparáveis às tertúlias dos maiores heróis da literatura.

Lançado em 1995, o livro já aventava a hipótese de que as moléculas que deram origem à química orgânica teriam chegado à nossa rocha trazidas por meteoros e cometas. Vinte anos depois, o módulo Philae, da sonda Rosetta, procura fundamentar a teoria, pousando no cometa Churyumov-Gerasimenko, a milhões de quilômetros da Terra.

Dentre todos os arranjos milagrosos que ocorreram no mundo pré-biótico, a criação de uma moeda energética chamada trifosfato de adenosina, ou ATP, chama a atenção.

A associação do ATP com o monofosfato de adenosina, o AMP, gera uma cadeia –ATP-AMP-AMP-AMP...– que, quando quebrada, libera a energia necessária para girar o motor das funções celulares.

Mas a estabilidade do engenho só poderia resistir à turbulenta Era Arqueana caso fosse sintetizado de maneira rápida, com ajuda de aceleradores metabólicos, as ditas enzimas.

O problema é que toda enzima é uma proteína. E como toda proteína é forjada pelo ARN, como poderia uma enzima ter ajudado a criar algo que a produz? Os primeiros capítulos de "Poeira Vital" se debruçam sobre esse paradoxo do ovo ou da galinha.

Uma vez estabelecida a tripa autorreplicante de ATP-AMP, a sua evolução até o ARN aconteceu, acredita-se, de forma súbita em todas as partes do globo, abrindo o vagaroso caminho para a criação e proliferação das bactérias anaeróbicas.

O paraíso dos que dependiam do metano chegaria ao fim com o surgimento das cianobactérias. Procariotas fotossintetizantes, esses demônios empestearam a atmosfera com oxigênio, tornando o céu azul e o ar irrespirável.

O holocausto só não foi maior porque o processo levou tempo suficiente para que os sobreviventes buscassem refúgio no interior dos inimigos aeróbicos. Muitas dessas bactérias resistem, até hoje, no intestino de animais como as vacas e, quem sabe por vingança, produzem peidos nocivos ao buraco de ozônio.

"Poeira Vital" ensina que a natureza promove mudanças drásticas, rápidas e irreversíveis.

Na mesma semana em que o pouso da sonda europeia no cometa distante me fez lembrar de De Duve, li "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector.

A via-crúcis da heroína de Clarice faz o caminho oposto ao de "Poeira Vital". Dentro do quarto minarete, na área de serviço do apartamento em que mora, a burguesa civilizada sofre uma desorganização interior e regride até alcançar o nada.

Em 179 magras páginas, G.H. retrocede no tempo, atravessa as "infinitas sucessões de séculos do mundo", visita civilizações extintas, vira múmia, mulher macaco, bicho, coisa, átomo, até se deparar com a indiferença da matéria.

"O mundo independe de mim", diz ela ao final. "A vida se me é, e eu não entendo o que digo." Em estado de aleluia, completa a sua paixão com a expressão: "... E então adoro".

Esse adorar de Clarice é irmão do "Deus é química" de De Duve. A veneração é da mesma ordem.

Quando eu era pequena, a escola promoveu um debate para saber se o homem vence o meio, ou se o meio vence o homem. A história recente deu cabo da soberba humana. Hoje, sabe-se que a natureza, ou Deus, terá sempre a última palavra.

Quando vejo as fotos dos quadrados de pasto e soja avançando sobre a floresta virgem do Pará, quando assisto Antonio Nobre, no TED, dizer que nenhuma invenção humana se equipara a uma máquina chamada árvore, tenho vontade de trancar Kátia Abreu no quarto de empregada com uma barata esmagada no armário, para ver se a fé agrícola expansionista da futura ministra sofre algum tipo de abalo.

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