Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Romantismo

Márcio Souza, o autor de "Galvez, Imperador do Acre", percorria o circuito literário europeu quando foi interpelado por um crítico impressionado com a qualidade de seus escritos.

Depois de lhe prestar elogios, o alemão confessou-se surpreso com o fato de um país miserável, como o Brasil, ser capaz de produzir um escritor da qualidade de Márcio.

O amazonense pausou, virou-se para o outro e respondeu: é como Goethe.

Acabo de ler "As Raízes do Romantismo", de Isaiah Berlin (ed. Três Estrelas, R$ 43,90, 256 págs.), baseado em seis palestras que o filósofo proferiu em 1965, na National Gallery of Art, em Washington.

Com assombrosa clareza e simplicidade, Berlin expõe conceitos complexos, como o do livre arbítrio em Kant, o da ação em Fichte e o do pertencimento em Herder, para explicar o surgimento de uma revolução estética e filosófica contrária ao racionalismo iluminista do século 18.

A Revolução Francesa serviu de inspiração para uma Europa central oprimida pelo fausto francês, pelo despotismo esclarecido de Frederico, o Grande, e pela ambição militar de Napoleão Bonaparte.

Com exceção de Goethe, abastado, o movimento surgiu entre jovens bem formados, filhos de funcionários públicos de classe média baixa, que jamais galgariam uma posição digna de sua ambição intelectual, devido à rígida hierarquia social europeia.

Influenciados pelo pietismo –corrente luterana que pregava o desenvolvimento de um mundo interior como antídoto ao que é negado ao homem–, esses alemães feridos social e nacionalmente opuseram-se à ideia de que existe uma lógica cartesiana e universal, capaz de, uma vez revelada, trazer paz e fortuna à humanidade.

Onde o iluminismo aristocrático via razão e unidade, o romantismo plebeu enxergava povos, culturas e crenças que entendiam a vida segundo sua origem e criação. Não há ciência que se compare à fé, à vontade e à ação, ao motor do perpétuo querer, seja de um indivíduo, de uma nação, ou da própria natureza.

Quero, logo existo.

Irônico, Márcio Souza comparou o milagre de sua existência num país como o Brasil ao surgimento de Goethe numa Alemanha aviltada.

A diferença é que o Brasil está na lanterna do ranking mundial de educação, enquanto o sistema educacional que formou Goethe também serviu a merenda escolar de Kant, Herder, Schelling, Schiller e Hegel.

O historiador Evaldo Cabral de Mello, em seu perfil na revista "Piauí", afirma que não adianta buscar a característica mágica, o mito luminoso que defina o Brasil.

Somos uma mistura de corrupção com incompetência, diz. Basta abrir o noticiário para se render a essa máxima.

A saga do garoto suspeito de matar o ciclista Jaime Gold, 57, a facadas, no dia 19 de maio, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, é um raio-x da tragédia social que impede o Brasil de dar um salto qualitativo à altura do que curou a Alemanha do seu complexo de vira-lata.

O adolescente cresceu sem pai e é filho de Jane Maria da Silva, uma catadora de lixo de uma favela em Manguinhos. Sozinha, com três filhos para criar, Jane não conseguiu livrar o menino da própria sorte.

Aos 15 anos, ele conta com 16 passagens pela polícia; numa das poucas vezes em que esteve detido, foi torturado e devolvido às ruas.

Quase a totalidade dos menores delinquentes que agora portam facas não terminou sequer o primeiro grau. A falta de creche, de escola, de planejamento familiar, de saneamento básico e de saúde pública –o quadro desolador e insolúvel é cúmplice do assassinato.

A boa educação não salvou os alemães de Hitler. O fascismo é um viés do romantismo, afirma Berlin. Mas a falência da pátria educadora resulta em algo comparável ao genocídio: a barbárie.

Como antídoto, o Congresso discute a redução da maioridade penal e a flexibilização das leis de porte de armas. Há quem defenda a pena de morte. Pelotão neles.

O compositor Criolo nasceu na periferia de São Paulo e se tornou um poeta requintado e visceral. É um bom exemplo de herói romântico à moda da casa.

No seu último show no Rio, no Circo Voador, ele lançou um desafio para combater a violência do Estado e do cidadão: "Para cada novo presídio, cem escolas".

Alemãs.

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