Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Fatalista

José Bonifácio, patriarca da Independência, defendia a regulamentação das terras indígenas, embora alimentasse desprezo pela sociedade nativa.

"Com efeito, o homem no estado selvático, e mormente o índio bravo do Brasil, deve ser preguiçoso; porque tem poucas, ou nenhumas necessidades; porque sendo vagabundo, (...) vivendo todo o dia exposto ao tempo não precisa de casas, (...) não tem ideia de propriedade, nem desejos de distinções sociais, que são as molas poderosas, que põe em atividade o homem civilizado."

Jamais cheguei a tanto, mas carreguei, por muito tempo, a convicção fatalista de que algumas culturas absorvem outras, sem que nada se possa fazer a respeito.

Era como eu pensava, quando aterrissei no Xingu, para as filmagens de "Kuarup", de Ruy Guerra. No final dos anos 1980, a questão indígena estava em alta. Babenco rodava "Brincando nos Campos do Senhor", no Pará; Dira Paes despontava em "A Floresta das Esmeraldas", de John Boorman, e Raoni, com a ajuda de Sting, impedia a construção da barragem que, décadas depois, se concretizaria com o nome de Belo Monte.

A descoberta recente de Claude Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha; a publicação de "A Queda do Céu", do xamã Yanomami Davi Kopenawa; o trabalho de Ernesto Neto e o lançamento do filme "O Abraço da Serpente" me fizeram rever a crença darwinista.

Em "O Abraço da Serpente", apesar dos horrores sofridos pelos silvícolas, o papel de vítima pertence à ciência, aos dois pesquisadores que se embrenham na mata, atrás de um sentido para a própria civilização.

O espectador mede o branco pelos olhos do xamã, que ao contrário do vadio tosco de José Bonifácio, do bom selvagem dos jesuítas, ou da figura simbólica do índio até então, é um ser dotado de raciocínio complexo, capaz de rebater, condenar e até rir do desatino do colonizador. Algo mudou na antiga percepção do nativo.

Antes, eu acreditava que o problema indígena morria lá, neles. Hoje, desconfio que morrerei aqui, com eles.

No Google Earth, basta seguir o caminho de Lévi-Strauss pelo Planalto Central para notar que, o que era floresta em 1930, é monocultura e pecuária em 2016. No Mato Grosso, o Parque Nacional do Xingu é o único quadrado de terra livre do Philishave geral.

No início do século 19, dom João 6º, recém-chegado ao Brasil, mandou "pacificar" os botocudos da bacia do Rio Doce para a exploração futura da região.

"Prometo usar a força apenas contra aqueles que resistirem aos brandos meios de civilização que lhes mando oferecer", disse o rei. O desembargador Jozé da Silva Lisboa preferiu adotar um tom mais direto: "Que se derrubem as matas todas e se distribuam as terras a homens ricos que deem emprego agrícola aos índios".

Duzentos anos mais tarde, a Samarco levaria ao pé da letra as ideias do desembargador.

Adeus Rio Doce, o Tapajós que me aguarde. E dá-lhe tiro em Caarapó. Devemos à soja, ao minério e à carne o milagre do PIB. Um viva ao pesticida, ao mercúrio e à serra elétrica. A política desenvolvimentista continua firme, apesar do abalo sentido pela fé no progresso.

O fatalismo com que eu enxergava o futuro dos índios, agora, me olha no espelho.

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