Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Guenzos

Só com a Anistia que os professores sentiram-se livres para falar dos anos de chumbo

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Ilustração
Marta Mello/Folhapress

O feudalismo dominou grande parte do meu currículo escolar. Estudei com afinco as técnicas do rodízio agrário, a divisão de terras, as relações de poder e a magnificência da arquitetura gótica.

O absolutismo e o mercantilismo também ocuparam lugar de destaque no quadro negro, mas bastava a história encostar na Revolução Francesa, para retrocedermos no tempo, voltando para as revisões do ismos já dados.

A Revolução Russa e a turbulenta França do século 19, bem como o Getúlio, Juscelino, Jango e o Golpe, se reduziam a parcos parágrafos didáticos, o que comprometeu meu entendimento do mundo e do país em que nasci.

Era a ditadura militar presente em sala de aula. Foi só com a Anistia que os professores de humanas —os de ciência e exatas eram menos afeitos à política— sentiram-se livres para discutir os anos de chumbo e, numa pirueta carpada, saltar do feudalismo para a revolução da Nicarágua.

Havia uma angústia ressentida, justificável, no corpo docente. Me lembro do professor de geografia desenhar dois quadrados na lousa, um pequeno e um grande, representando o Brasil e os Estados Unidos.

O menor crescia em progressão lenta e direta, enquanto o outro se alargava exponencialmente, exemplificando a nossa condenação ao subdesenvolvimento e ao atraso. Me incomodava tanto a censura curricular dos quartéis, quanto a deprimida perspectiva histórica dos mestres de esquerda.

Foi o Asdrúbal e a fase odara de Gil e Caetano, foi a sunga do Gabeira que me serviram de norte. Foi Flaubert, Machado, Euclides e Guimarães, foi Nelson, Dostoiévski, Mann, Antunes e tantos outros artistas que, longe de uma visão dogmática, me revelaram as contradições próprias do homem.

A arte me de-formou. Esse campo subjetivo, que alimentou a desconfiança arraigada que eu tenho das convicções aguerridas. Covardia? Talvez.

"É por causa de pessoas como você que Hitler subiu ao poder", me disse um amigo que respeito e admiro, durante uma conversa sobre a escalada do fascismo no Brasil atual. "Você pode não tomar partido agora, mas uma hora isso não será mais possível", advertiu ele.

Não rebato a crítica. Incapaz de passar a borracha nos equívocos cometidos pelos que se elegeram com a promessa de agir de forma distinta das velhas raposas; sinto frio na espinha quando vejo um jovem liberal doutorado, embriagado de alegria com a prisão de Lula, defender o livre comércio das armas.

Minha geração, educada para esquecer, ignora o Brasil pré-64 na mesma medida em que os moços de hoje não sabem do horror de viver sob um estado de exceção. É a memória curta de uma história contada pela metade, ou nem isso.

"Gordos, Magros e Guenzos", de José Almino de Alencar, é leitura obrigatória para os que, como eu, foram mal preparados na escola e vacilam na hora de assumir certezas.

Intelectual peso pesado, filho de Miguel Arraes, Almino deixou o país aos 17 anos, fugido dos militares. Curiosamente, o exílio preservou nele uma visão abrangente do mundo e contínua do Brasil.

Suas crônicas falam dos nossos elos perdidos e traçam ilações inesperadas entre Joaquim Nabuco, Lima Barreto, Gilberto Freyre, Dilma, Luiz Gonzaga, o Funk, Bolsonaro, Tennessee William, Dante e Suassuna. Almino é excelente antídoto para a ignorância, o maniqueísmo e a cegueira cívica em que andamos metidos.

"Os intelectuais públicos fazem falta" —a frase se refere a Mário de Andrade, mas se aplica a ele. "O que se passa na cena pública brasileira é quase sempre o bater de tambor arrebanhando tribos ideológicas."

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