Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Discordo

Troquei uma noite mínima de descanso pela revolução orgânica

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Marta Mello
 

Fotógrafos de cinema amam a luz do amanhecer e do lusco-fusco do fim de tarde. O périplo do astro rei deixa duas alternativas devastadoras para quem vive do batente da sétima arte: ou bem você acorda, ou se deita às cinco da matina.

A privação do sono, está provado pela ciência, compromete o raciocínio, a fala, a coordenação motora e os bons fluidos do organismo. É como no Exército, tem que ser soldado para aguentar.

Fazia tempo que eu não enfrentava um set de filmagem. Foi um retorno feliz, na série "Sob Pressão", eu andava saudosa. Mas bastou uma semana de noturnas, seguida de cinco diurnas acordando de madrugada, para o gozo do pertencimento arrefecer na dura realidade.

Segunda última, depois de 12 horas de labuta em Cascadura, cheguei zumbi em casa. Receosa de capotar cedo demais, arrastei-me como pude, até a hora de nanar. Eu levantaria às 4h50 no dia seguinte.

Deitada, acertei o alarme, li, já ia fechando os olhinhos, quando entrou uma mensagem no celular. Eu sei, eu não devia, mas chequei o coisa-ruim.

Um grupo ecológico pedia meu engajamento numa enquete oficial do Congresso. Os canalhas estão para aprovar uma lei nefanda, que libera geral o uso de agrotóxicos, era preciso agir urgente.

Falta de sono dá nesses rompantes, decidi me empenhar. Gastei o tempo que eu não tinha preenchendo o formulário: RG, email, CEP, nome completo digitado no dedinho... Aguarda confirmação...

Cadastrada, piscou na tela o SAIBA MAIS. Eu quis saber.

A lei apareceu, obscura, feita para confundir, quanto mais com os neurônios a meio palmo. É pra votar contra ou a favor? Tive vergonha de perguntar.

Retornei à mensagem engajada. A militante escrevera que precisávamos lutar a favor. A favor, ela escreveu. Eu sabia do lobby dos ruralistas, dos perigos de temperar a canja dos meus filhos com Baygon, mas estava escrito na convocação: A FAVOR.

Li e reli a famigerada lei, era pior que hieróglifo. Retornei ao grupo. A lei, o grupo, a lei, o grupo... O a favor falou mais alto. Apertei convicta no CONCORDO.

Não satisfeita, dei um foward em todos os meus contatos, pirei, enlouqueci. Troquei uma noite mínima de descanso pela revolução orgânica. Apaguei a luz algo excitada, havia cumprido um dever cívico. Foi quando o celular desembestou de tanto apito.

Uma enxurrada de mensagens perguntando se era para votar contra ou a favor. Não estava claro para ninguém. Demorou, mas acabou caindo a ficha: o botão certo era o do DISCORDO.

Adeus, sono.

Corri para o site do Congresso, não havia opção arrependimento. O triunfo dos transgênicos, o DDT da merenda, o acefato do tomate, o glifosato da cana, do organoclorado das carnes, a extinção das abelhas, o câncer e a deformidade a pesar nas minhas costas.

Não dava para dormir sem reverter o estrago. Noite alta, céu risonho, meu dedinho a escrever a errata do DISCORDO. Era discordo, é claro que era discordo. Eu discordo, porra!

Discordo das 12 horas de serviço, discordo de ter que pular da cama antes do sol; discordo da bancada da bala, da Bíblia, do boi; discordo do Trump, do Putin, do Temer, da Dilma, do Geddel, do Aécio e do Bolsonaro; discordo do ACM Neto, que mandou cortar 500 árvores para fazer um BRT. Eu discordo do Gilmar, eu discordo da Alerj, das milícias e do narcotráfico.

Se, algum dia, o meu nome for incluído na lista de defensores dos pesticidas, fica aqui a contraprova. EU DISCORDO, EU DISCORDO, EU DISCORDO DE TUDO, EU DISCORDO!

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