Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

'O Percevejo'

Intervenções de Hélio Eichbauer nos palcos dialogavam com textos e canções

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Ilustração
Marta Mello/Folhapress

Vinte e cinco anos atrás, por aí, eu descia a Delfim Moreira de carro, quando avistei um casal bonito, de meia-idade, caminhando na orla. O trânsito fluía lento e pude admirá-los a uma certa distância.

Eram Hélio Eichbauer e Dedé Veloso.

Meus olhos se encheram d'água, diante dos amantes serenos, abraçados no contraluz da manhã, passeando anônimos pelo Leblon. Ninguém os conhecia, ninguém sabia que os dois haviam atravessado todas as revoluções da história recente do Brasil e do mundo. Me senti fruto deles. Hélio e Dedé, meus Adão e Eva, meus fundadores. Daí a emoção.

Na época, a humanidade ainda não havia guinado para o desterro de agora. A cultura do ódio não existia, a violência não usava fuzis, a memória da ditadura militar inibia a truculência ufanista e o fundamentalismo religioso engatinhava. Não havia a suspeita de que a democracia se transformaria num balcão de compra e venda.

Os horrores de sempre, é claro, existiam; mas o futuro prometia ser um tempo mais justo e equilibrado, calcado nos valores conquistados por aquele casal.

A notícia da morte de Hélio Eichbauer me trouxe de volta a lembrança, aliada ao luto pela quimera que não se concretizou. A potência transformadora da arte, que ele experimentou e praticou como poucos, se perdeu na reviravolta tecnocrática. Hoje, a cultura é vista como perfumaria, roubalheira, depravação ou, no melhor dos casos, entretenimento.

Minha sensação é a de que atravessamos um período de trevas, semelhante ao da queda do Império Romano. Nos tornaremos iletrados, incultos, supersticiosos, preconceituosos, tacanhos e violentos, antes de que um novo Renascimento ressuscite artistas e pensadores da dimensão de Hélio.

Recentemente, assisti a remontagem de "O Rei da Vela", com extraordinários cenários e figurinos de sua autoria. Quando Renato Borghi abriu a sessão, minha mãe se virou para mim e exclamou com a voz embargada: "O teatro já foi isso, filha! O teatro que eu conheci já teve essa força!" O teatro já foi digno de Hélio.

Ele nunca foi decorativo. Suas intervenções eram obras em si, que dialogavam de forma sutil com textos e canções. Lembro-me, em especial, do impacto das telas do russo Kasimir Malevich sobre cavaletes, em "Abraçaço"; da baía da Guanabara de "O Rei da Vela", em "O Estrangeiro"; e da elegante inocência do palco de "Partimpim", de Adriana Calcanhotto.

Em 1981, sentei-me no teatro Dulcina para ver a versão brasileira de "O Percevejo", de Vladimir Maiakóvski, dirigida por Luis Antonio Martinez Correa. Com cenários de Hélio e estrelada por Dedé Veloso, a peça nos deixou a canção "O Amor", poema do autor russo, adaptado por Caetano.

Maiakóvski se suicidaria um ano após escrever a comédia fantástica que narra a história do boêmio Prissípkin, operário que trai sua classe em troca da ascensão burguesa. Congelado por 50 anos, ele acorda numa União Soviética pós-humana de tão desumana. No futuro acético, não há arte ou sonho, não há mais amor; ninguém fuma, peca ou cura as paixões com vodca.

Numa visão premonitória do que se tornaria a União Soviética de Stálin, com a perseguição de artistas e escritores, o herói Prissípkin se transforma numa atração de zoológico, curiosa aberração para uma sociedade que não reconhece mais o valor do indivíduo e da arte.

Hélio nada tinha de Prissípkin, mas o quadro descrito por Maiakóvski lembra a desolação descarnada do nosso presente. Se eu pudesse, ressuscitaria Hélio Eichbauer, ainda que mais não seja, porque ele era um poeta que ansiava o futuro.

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