Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

P.

Espanta o fato de Bolsonaro ter entrado para a sua lista de decepções políticas

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P. foi quem primeiro me falou de Messias presidente como um fato possível e desejado. Surpresa, perguntei o que o atraia no candidato ainda nanico, e ele respondeu que era a promessa de armar os cidadãos de bem para caçar a bandidagem à bala.

Quando jovem, P. sonhou em servir na Aeronáutica, mas um problema de visão o impediu de seguir o caminho dos irmãos e primos, todos tenentes, cabos e soldados. O direito de portar um revólver na cintura talvez servisse para atenuar a dor da carreira militar frustrada.

P. é morador da Vila Kennedy, sub-bairro de Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro. 

A Vila foi inaugurada por Carlos Lacerda, em 1964, para alojar a população removida das favelas do Morro do Pasmado, em Botafogo, e do Esqueleto, no Maracanã.

Batizadas com o sobrenome de John Kennedy, após a morte prematura do americano no atentado em Dallas, as casas populares foram custeadas pela Aliança Para o Progresso. 

Criada em 1961 pelo então presidente dos Estados Unidos, a Aliança financiou obras sociais em toda a América Latina com o objetivo de impedir o avanço do comunismo —meio século depois, voltamos à mesma toada.

Ilustração
Marta Mello/Folhapress

Quando os pais de P. se mudaram para a Vila Kennedy, a vizinhança com o 14º Batalhão da Polícia Militar era uma garantia de eterna segurança. 

A ocupação desordenada do entorno, no entanto, somado ao fracasso das UPPs, que empurraram as facções criminosas para a periferia, corroeram a paz local.

Hoje, P. convive com bocas de fumo a céu aberto e fuzis circulando sem cerimônia pela praça onde a filha brinca.

Em meio ao abandono social, as igrejas pentecostais, uma das quais ele frequenta, são as únicas organizações comunitárias empenhadas em ordenar e dar sentido à vida dos que ali habitam.

Dois anos atrás, a mulher de P. foi diagnosticada com baixa contagem de óvulos e aconselhada a tentar uma inseminação artificial. Movido pela fé, o casal conseguiu engravidar por meios naturais. A filha, ele assegura, foi um milagre de Deus. 

Como contestar?

A admiração pela farda e a gratidão ao Senhor fizeram dele um eleitor fiel às bancadas da bala e da Bíblia.

P. apoia Wilson Witzel e creio que gostaria de ver a boca de fumo da praça em frente à sua casa metralhada por um dos helicópteros do governador metido a Rambo. A devoção, contudo, não fez dele um cordeiro cego.

Marcelo Crivella nunca mais merecerá o seu voto, graças a uma administração da prefeitura avaliada como desastrosa por ele. Mas o pastor prefeito não foi o primeiro e nem será o último político riscado do seu caderninho.

Em abril de 2003, com Lula eleito havia poucos meses, P. foi surpreendido por uma reforma previdenciária que aumentou, de seis meses para um ano, o prazo de contratação com carteira assinada para que o empregado tivesse direito ao auxílio-doença.

Impossibilitado de trabalhar devido a uma hérnia inguinal, e faltando apenas 60 dias para completar o ano de carteira exigido pelo benefício, P. amargou três meses de pós operatório sem ganhar um centavo. Lula e PT nunca mais.

O que espanta é o fato de Bolsonaro ter entrado para a sua lista de decepções políticas antes mesmo da reforma da Previdência ter sido aprovada. Uma reversão que eu julgava impossível, visto o entusiasmo com que ele abraçou a candidatura de Jair.

A rachadinha de Queiroz na Alerj, a mansão de Ronnie Lessa no mesmo Vivendas da Barra do presidente, a escatologia e a falta de projeto na saúde e na educação; além de um fake vídeo sobre Carlucho que circula na internet, sugerindo que o vereador é gay; tudo serviu, a homofobia inclusive, para corroer a confiança de P. no Mito.

Mas a gota d’água foi mesmo o desrespeito com os militares. É como se o clã tivesse ofendido não só a instituição que ele admira, como também o país, a família, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Nos cultos semanais, P. agora reza para que Mourão assuma o cargo, temendo que o libera-geral das armas se volte contra os quartéis.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek declarou que votaria em Trump, de quem tem horror, porque sua vitória obrigaria democratas e republicanos a se reinventarem. No Brasil, a mudança se deu com os milicos. Antigos exus capetas, eles se transformaram, do dia para a noite, na salvaguarda da política nacional. Amém.

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