Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Vermelhos

O totalitarismo iguala Hitler, Stálin, Mussolini, Mao, Franco e Tito

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Apavorada com os rumos do país e do planeta, vejo meus filhos crescerem em tempos adversos e penso na minha sogra.

Ucraniana de nascença, Irina Popow sofreu horrores de dois dos maiores facínoras da humanidade: Hitler e Stálin.

Irina mal completara oito anos, quando os nazistas invadiram a União Soviética. Sobrevivente do Holodomor —a grande fome impingida por Stálin à Ucrânia—, a família Popow concluiu que a única maneira de se livrar dos russos era desobedecer a ordem de retirada e se tornar prisioneira dos alemães.

Os Popow amargaram quatro anos num campo de trabalho forçado e outros quatro em um de refugiados, ambos na Polônia, até serem aceitos pelo Brasil. E eu sofrendo por causa do Bolsonaro...

E foi pensando nela e nos meus que abri um livro que havia seis anos me olhava da estante: "O Homem que Amava os Cachorros", do cubano Leonardo Padura.

Ilustração
Marta Mello/Folhapress

Padura reconstrói com precisão assombrosa os meandros que levaram ao assassinato de Leon Trótski no México, num mundo que assistiu à utopia comunista ruir nas mãos de um ditador sanguinário e à Europa ser dominada por doidos do mesmo calibre.

O chanceler Ernesto Araújo deveria ler o livro para entender que não é que o nazismo seja de esquerda, é o totalitarismo que, independente da ideologia, iguala Hitler, Stálin, Mussolini, Mao, Franco e Tito.

O início deste milênio guarda uma semelhança preocupante com a primeira metade do século 20. A crise econômica de 2008 e a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, abriram alas para o nacionalismo populista. Trump, Putin, Jair e Olavo são herdeiros das cizânias que florescem como ervas daninhas na obra de Padura.

Cresci num hiato da história, após a Guerra Fria. Tinha 25 anos quando a União Soviética colapsou. Com a queda do Muro de Berlim, fronteiras se abriram e a democracia surgiu como promessa na Cortina de Ferro e em países ao sul do Equador.

A pax romana da globalização durou pouco, mas o suficiente para me transformar numa inteligentinha do Pondé, progressista liberta sem nenhum preparo para enfrentar a truculência da história.

Hoje vivo o espanto do retorno do que eu julgava sepultado. O governo fardado, a paranoia comunista, a corrida armamentista, o obscurantismo moralista e o fundamentalismo religioso, além do enfraquecimento da arte como agente de transformação.

O "Homem que Amava os Cachorros" me serviu de antídoto à sinistrose.

Ao leitor, bastaria o tratado sobre a tirania stalinista, a impressionante reconstrução de lugares, eventos, datas e personagens dragados pelos equívocos da revolução do povo. Mas Padura acrescenta a camada invisível dos sentimentos, a literatura. E faz isso com a destreza de um romancista policialesco, desses que viciam e entretêm.

Numa hora tão avessa à criação, com a realidade batendo de lavada a ficção, o cubano ensina que a arte é capaz de, para além da crônica, criar empatia, identificação com o que existe de contraditório, incerto, falho e torto no ser humano.

Fiquei tão consumida pelo livro, que saí devorando tudo o que havia na praça.

Desisti de "Trotsky", da Netflix, no quinto capítulo. Apesar de falada em russo, a série é de um maneirismo intragável e exibe uma Frida Kahlo digna da mais torpe das pornochanchadas.

"Chernobyl", da HBO, é imperdível. Baseada no livro "Vozes de Tchernóbil", de Svetlana Aleksiévitch, a série mistura informação e drama com a mesma mestria de "O Homem que Amava os Cachorros", e poderia servir de epílogo ao livro.

O terror conspiratório implementado por Stálin na União Soviética está na raiz da catástrofe nuclear que explodiria nas mãos de Gorbachev.

A comédia "A Morte de Stalin", com Steve Buscemi no papel de Nikita Kruschev, esmiúça com divina acidez os acontecimentos narrados de forma breve nos capítulos finais da obra do cubano.

E tem também a excelente série "Os Americanos", da Fox, sobre um casal de espiões soviéticos infiltrados nos Estados Unidos dos anos 1980.

Mas é "Limonov", romance de Emmanuel Carrère, que traz à luz uma figura comparável ao trágico, desprezível e vil anti-herói de Padura.

Biografia Eduard Limonov —poeta russo, punk nova-iorquino, darling francês, soldado sérvio e fundador do Partido Bolchevique Nacional—, o livro descreve a desilusão raivosa da geração que cresceu e padeceu com a glasnost.

Ramón Mercader é pai de Limonov, e ainda vivemos à sombra do que pariu os dois.

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