Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Na cabecinha

Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar

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Terça-feira gorda . Um homem sequestra um ônibus na ponte Rio-Niterói. Numa ação bem calculada da polícia, atiradores de elite o abatem, salvando a vida dos passageiros reféns.

Ao descer do helicóptero que o levou até a cena do crime, o governador Wilson Witzel não contém a euforia e, erguendo os punhos, comemora o desfecho como um torcedor de futebol que vibra diante de um gol.

Uma semana antes, sua política linha-dura de segurança pública, com uso de helicópteros blindados para atirar “na cabecinha” dos bandidos, havia enfrentado duras críticas.

Ilustração
Marta Mello

Depois da morte de seis jovens inocentes em confrontos entre a polícia e o tráfico, a ONG Redes da Maré entregou à Justiça 1.500 cartas escritas e ilustradas por crianças da comunidade, pedindo maior racionalidade nas ações policiais.

Witzel reagiu incomodado, pondo a culpa dos óbitos nos defensores dos direitos humanos. E viu, no bem sucedido abate do sequestrador da ponte, uma justificativa para a truculência de sua gestão. Daí a alegria incontida do governador.

Nas declarações sobre o ocorrido, Witzel procurou ser comedido, se solidarizando inclusive com a família do sequestrador, mas a linguagem corporal que exibiu no desembarque não deixa dúvida quanto ao lucro político que pretendia extrair da tragédia.

Qual a razão de elegermos políticos tão bélicos, tão devotos de Deus e da bala, que confundem direitos humanos com ideologia vermelha e prometem sanar o problema social com o extermínio bem aplicado?

A razão é o medo.

Em entrevista ao programa Painel, na GloboNews, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao ser confrontado com o diretor demitido do Inpe, o físico Ricardo Galvão, argumentou que os projetos de exploração da biodiversidade amazônica haviam fracassado e que era hora de buscar alternativas.

As queimadas e o desmatamento vexaminoso pareciam não afetar o ministro, que ressaltava as riquezas intocadas da região, minimizando o valor da ciência, o desmonte do Ibama e os benefícios trazidos pelo Fundo Amazônia.

Witzel e Salles se completam.

Ambos defendem a ideia de que o nhém-nhém-nhém ecológico-humanista da social-democracia faliu, foi para o ralo junto com o demônio encarnado do lulopetismo.

De fato, entra governo sai governo, os problemas de habitação, saneamento, saúde, segurança e educação só se agravam. Cruzado novo, cruzeiro novo, Nova República... O Brasil é o país condenado a começar do zero.

A diferença, agora, é que o desejo de jogar na latrina tudo isso que está aí, vem acompanhado da percepção de catástrofe irrefreável, de fim de mundo, que os atuais governantes parecem querer acelerar. O apocalipse está em voga.

As mudanças climáticas, os verões tórridos, as secas, incêndios e inundações, a miséria crescente, as migrações, o lixo tóxico, as epidemias e a recessão econômica, esse rosário de horrores sem solução breve ou possível, delineia um não futuro onde a morte aos milhões será inevitável.

Tenho vivido assim.

O caixa da farmácia embrulha uma cartela de analgésico num saco plástico gigante, eu recuso o invólucro e penso: o mundo vai acabar. Corro a lagoa respirando escapamentos e concluo: o mundo vai acabar. Dou descarga, como carne, separo o lixo, escovo os dentes, espero o ipê que plantei florescer e sei: o mundo vai acabar. Assisto ao noticiário e confirmo: o mundo vai acabar.

E não é nem preciso que a frente fria vinda do sul se misture com a fuligem das queimadas do norte, transformando em noite a tarde de agosto em São Paulo, para saber que o mundo vai acabar.

Porque até numa manhã de luz, com o verde da mata aceso contra o céu azul da Guanabara, tenho a certeza de que o mundo vai acabar.

O terceiro milênio não cumpriu o esperado. A classe média empobreceu, os empregos foram para o brejo, a tecnologia da rede revelou o pior de nós todos e seguimos escravos do consumo e da queima suja de combustível fóssil. Só uma catástrofe de proporções bíblicas fará parar a engrenagem.

É a angústia, o pânico do porvir, é o medo que se agarra em Deus e elege esse governador que, incapaz de conter o gozo, comemora o tiro, mesmo que devido, de um sniper.

Freud deu nome aos bois logo após a primeira das duas grandes guerras mundiais que teve a infelicidade de testemunhar. Essa ânsia de fim se chama pulsão de morte.

Só tem dado ela nas urnas eleitorais do planeta.

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