Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Polônio

A lenga-lenga habitual dos burocratas que conspiram com pelo e para o poder

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Nós falhamos na comunicação. Esse é o ponto mais importante. [...] Isso é algo que a gente precisa reconhecer, é um fato. E, daqui para a frente, se dedicar mais.”

Do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre o avanço das queimadas na Amazônia. 

O Brasil pegando fogo, Sudeste e Centro-Oeste respirando fuligem, o dia virando noite em São Paulo e o “ponto mais importante” da desgraça toda é a falha de comunicação.

O ministro do Meio Ambiente deveria ler o relatório que o Human Rights Watch publicou nesta semana, com histórias escabrosas de morte e perseguição de fazendeiros, policiais, fiscais, indígenas e ambientalistas, envolvendo a máfia do ipê.

O documento talvez o convença de que existem outras questões relevantes, como a fiscalização, a investigação, a punição e a proteção a testemunhas.

Silhueta de uma floresta à noite, encoberta pelo fogo. A fumaça forma o rosto de Bolsonaro e em frente, um rosto feito mosaico com olhos azuis.
Marta Mello

Para surrupiar madeira de reservas ambientais é necessário contar com uma rede de ilegalidade que inclui o investimento em maquinário pesado, a falsificação de papelada para esquentar o roubo, o apoio de milícias armadas e o assassinato dos que se arriscam a enfrentá-la.

A pesquisa de dois anos do HRW, realizada nos estados do Maranhão e do Pará, mostra que o desmatamento é uma indústria criminosa altamente lucrativa, liderada por uma Camorra extrativista. Mas entre combater o crime organizado e polir o discurso, o ministro opta pelo discurso.

Numa mesa do programa Painel, da GloboNews, ao ser confrontado com o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, que havia apontado o crescimento das queimadas em 2019, Salles exibiu uma agressividade indigesta.

Acusado pelo ministro de seguir um viés ideológico contrário ao governo Bolsonaro, o físico, entre acuado e ofendido, respondeu que a ciência era o seu norte, não a ideologia.

Com irritação indisfarçável, Salles desdenhou do cientificismo do adversário, demonstrando prazer em chutar o cachorro deposto. O problema é que os dados apresentados pelo homem que ele tanto se empenhou em desmerecer foram confirmados pela Nasa. Inpe honrado, as chamas correram o mundo.

Com a crise deflagrada, o agronegócio atingido, a misoginia solta e a paranoia bolsonarista em regozijo, graças à lamentável declaração de Emmanuel Macron, favorável à internacionalização da Amazônia, um outro Ricardo Salles se apresentou no programa Roda Viva, da TV Cultura.

O ministro deve ter tomado uma garrafa de vaselina para encarar a sabatina dos jornalistas. Palaciano, ele exibiu uma gravidade ensaiada, mascarando o caráter vingativo que o havia dominado no Painel. 

A soberba deu lugar à retórica.

Palavras, palavras, palavras... Verbos embolorados e malabarismo estatístico, a lenga-lenga habitual dos burocratas, dos Polônios de ambição confessa que conspiram com, pelo e para o poder.

É isso o que o ministro chama de comunicação?

Sobre a redução dos autos de infração do Ibama, Salles responde à BBC: “A quantidade de autos de infração não caiu tão radicalmente assim. O que caiu, talvez, tenha sido a consistência dos autos de infração”.

Sobre o alerta do pesquisador Carlos Nobre, a respeito do ponto de não retorno do desmatamento e do risco da floresta virar savana: “ Não há verdade absoluta sobre isso. Não é porque o Carlos Nobre diz que são 25% que isso se torna uma verdade. Não estou dizendo que sim nem que não”.

Polônio escrito e escarrado, o conselheiro equilibrista da corte do rei fratricida. 
Hamlet: “Estais vendo aquela nuvem no céu? Não parece um camelo?”.
Polônio: “Pelas escrituras, parece realmente um camelo!”.
Hamlet: “Ou uma fuinha?”. 
Polônio: “Tem o dorso parecido com o de uma fuinha”.
Hamlet: “Acho que parece mais uma baleia”.
Polônio: “É exatamente igual a uma baleia”.
Fora a ideologia inimiga, 
tudo é relativo na cabeça do Polônio Salles.
Terminei de assistir ao Roda Viva tão incomodada com o autocontrole esforçado do ministro, com a negação dos fatos e a falastrice hipnótica, que fui dormir enjoada. No dia seguinte, ele foi internado com um mal-estar súbito. Pudera. A performance custou-lhe o fígado.
Polônio: “Sabeis quem eu sou, meu senhor?”.
Hamlet: “Claro que sim. Sois um peixeiro”.
Polônio: “Não, meu senhor”.
Hamlet: “Gostaria então que fôsseis tão honesto quanto ele”.
Polônio: “Honesto, meu senhor?”.
Hamlet: “Sim, pois manter-se honesto num mundo como este é coisa que só um dentre mil homens consegue”.

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