Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Roma

É o prenúncio da segunda idade das trevas

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Ilustração mostra homem de terno, sentado em escrivaninha, com bandeira do Brasil com uma cruz no lugar da frase "Ordem e progresso" e uma Bíblia. Ele pensa um Jesus Cristo dourado de terno, batendo na cabeça de um lobo que está em cima de um cordeiro, aparentemente, morto.
Marta Mello/Folhapress

Para você que, como eu, teme o fim do Estado laico e o avanço do fundamentalismo cristão; para você que se sente como uma patrícia da Roma Antiga, devota de Epicuro, que escuta o estrondo do Vesúvio do jardim de Herculano, aconselho assistir ao documentário “The Family” (Netflix), sobre uma organização conhecida como The Christian Mafia.

De Bill Clinton aos Bush pai e filho, de Reagan a Nixon, de Carter a Obama, passando por Trump, nenhum dos presidentes americanos deixou de marcar presença no National Prayer Breakfast, evento anual dessa congregação sem nome, com enorme influência política nos Estados Unidos e no mundo.

Idealizada durante a depressão americana da década de 1930 por Abraham Vereide, um imigrante norueguês bem relacionado, a irmandade nasceu da reunião de 19 empresários de Seattle, preocupados com o levante sindical que paralisou a cidade, exigindo melhores condições de trabalho.

Vereide acreditava que o clima de guerrilha instaurado nas ruas era fruto de um plano satânico executado pelos sindicalistas. Para salvar a sociedade do demônio encarnado nos operários era necessário não só o uso da força, como o uso da força em nome de Deus.

O prefeito e o governador eleitos na crise sairiam desse grupo cristão de homens de bem, massacrariam o movimento sindical, erradicando a esquerda do estado de Washington.

Durante a Guerra Fria, Vereide convenceu o presidente Eisenhower a encarar a luta contra o império comunista ateu como uma guerra santa, investindo na criação de um exército de líderes cristãos, formado para ocupar postos de comando estratégico no governo.

Oitenta anos depois, a ideia se transformaria numa irmandade empenhada em difundir um cristianismo forte, sem igreja, capaz de congregar republicanos e democratas para orarem em nome de interesses comuns.

O problema do cristianismo, afirmava Vereide, foi ter se dedicado à plebe, esquecendo-se dos homens de pulso firme, capazes de restaurar a lei e a ordem.

Se todos amarem o cordeiro, quem amará o lobo? E com um lobo ao seu lado, os cordeiros obedecerão. Concentre-se no lobo, diz a mensagem, e mostre a ele o grandioso poder da fé.

Quando Vereide morreu, Doug Coe assumiu a liderança da confraria, empenhando-se em torná-la invisível. “Quanto mais invisível for a organização, mais poder ela terá”, dizia o homem mais prestigioso de Washington, de quem nunca se ouvia falar.

Desde então, a Family tem praticado uma “diplomacia discreta”, como define Bush pai em discurso no National Prayer Breakfast, “para não dizer secreta”.

Admirador da paixão cega despertada por Hitler, Mao e Mussolini, e da fidelidade alcançada pela Camorra, Coe inicia uma ofensiva espiritual para além da fronteira, enviando congressista para a Europa, a ex-União Soviética, a África e a América Latina.

“Esqueça tudo o que você sabe sobre o cristianismo”, aconselha um dos membros, “Cristo não veio à Terra pelos puros, mas sim pelos doentes, pelos condenados pela justiça e pelos investigados por seus crimes. Não que a irmandade apoie essas ações, mas, por amor,  é nosso dever aproximar os homens maus de Jesus.”

E enquanto evangeliza e perdoa os lobos pecadores, com apoio financeiro da NRA, a confraria defende a moral e os bons costumes para a massa de cordeiros fracos.

Na Romênia, a Family influenciou o referendo para mudar a constituição que reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na genocida Uganda, o missionário enviado não só fez o general ditador assassino e homofóbico Yoweri Museveni chorar, ao dizer que Jesus o amava, como semeou o preconceito que fez florescer políticos como David Bahati, autor do projeto de lei que defende a pena de morte para homossexuais. “Eu não quero matá-los”, declara o parlamentar, “quero apenas curá-los”.

E em nome de Jesus e dos escolhidos, das crianças, da família e da moralidade, abrem-se, debaixo dos panos, as portas da luxúria econômica do livre mercado de petróleo, minério, armas e afins.

Morte ao secularismo. Que se cumpra a missão de Paulo nas escrituras, a de levar a palavra de Cristo aos reis, em prol dos interesses do Estado.

Cheira a teoria conspiratória, mas que a série explica, em parte, a ascensão do poderio evangélico no Brasil e a devoção do lobo Messias, isso ela explica.

Trump, Putin, Gaddafi, Museveni, Jair… enquanto a alcateia de eleitos se locupleta, resta a nós, cordeiros, suportar com resignação as Damares, os Araújos e Weintraubs do Ministério Supremo da Fé.

É a queda do Império Romano e o prenúncio da segunda idade das trevas.

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