Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Amor

O que fica é a Bárbara, é o Hector, é a arte e a poesia; é isso que vale

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Em meio ao funil das comemorações de dezembro, dos encerramentos das atividades escolares, dos leilões beneficentes, cestas básicas e décimos terceiros, dos cartões, árvores e perus natalinos, das famigeradas sacolas de presentes dos shoppings atochados, e atravessando aquela idade em que você é responsável tanto pelos que pariu quanto pelos que te pariram, desejar feliz 2020 não é tarefa simples.

E justo nessa hora, perdida no barulho do mundo e assombrada com a brutalidade que nos governa, calhou de assistir ao documentário sobre Hector Babenco, dirigido com incomparável delicadeza por Bárbara Paz.

Duas pessoas estão abraçadas, as duas estão de frente para a cena e, desse modo, uma atrás da outra. É possível ver que as duas estão se olhando com expressões felizes e o braço da que está atrás passa para a frente até encontrar a mão da outra pessoa que está um pouco abaixo de seu pescoço.
Publicada neste domingo, 29 de dezembro de 2019 - Marta Mello/Folhapress

Meu pessimismo e desencanto crônicos foram para o espaço diante da beleza do que vi. O personagem Babenco ensina que existir é perseverar, é arquitetar planos, até quando, no auge dos seus 38 anos, o médico lhe dá mais seis meses de vida.

Hector Babenco era um homem inteligentíssimo, sensibilíssimo, generoso, amoroso e também cruel. Mas não era cruel por gosto, e sim por respeito.

Estivemos para trabalhar juntos mais de uma vez. Numa delas, fiz uma leitura catastrófica de “Carandiru”.

Perdi o papel na mesa de ensaio, sem entender o porquê de ter lido tão mal. Anos depois, ele me chamaria para participar do “Meu Amigo Hindu”, seu último filme, e, mais uma vez, meti o pé pelas mãos e fugi da raia.

Eu tinha medo de trabalhar com o Hector, de decepcioná-lo e vê-lo perder o apreço por mim.

Eu estava adaptando meu livro, o “Fim”, para uma série de TV, quando Maria Camargo —que roteirizou com a Bárbara o documentário e colaborou comigo na série—, me mostrou uma gravação do meu argentino favorito descrevendo o seu hipotético velório. Para minha surpresa, aquela voz debilitada me incluía na lista de amigos que gostaria de reunir num suposto jantar pós-morte.

Bárbara filmou o banquete. Ao me ver ali, na tela, entre pessoas tão queridas do diretor, pensei que finalmente havia trabalhado com ele, estado ao seu lado no cinema e honrado o meu amor e minha admiração por aquele ser tão rigoroso e singular.

Dez anos atrás, quando meu enteado foi desenganado, depois de três tratamentos frustrados para curar uma aplasia de medula, os médicos aventaram a hipótese de um transplante experimental de medula 50% compatível.

Cansado de tanto hospital, João respondeu que não queria mais, que preferia parar por ali, estava desistindo da vida. Assustado com a desesperança do filho, o Andrucha ligou para o Hector. Meia hora depois, lá estava ele, com seu PhD em doenças incuráveis, humorado e afetuoso como poucas vezes vi alguém ser, tomando para si a missão de convencer um jovem a encarar o transplante.

O Hector pediu para ficar a sós com o João e, uma hora depois, meu enteado aceitou se submeter ao procedimento que o faria estar vivo e são até hoje.

Quase no fim do documentário, a lembrança do Hector naquele quarto do hospital me invadiu a cabeça. E dei de chorar, chorar que nem criança, compulsivamente. Senti uma saudade imensa do seu carinho e da sua franqueza, além de uma gratidão infinita pela honra de tê-lo conhecido.

O gesto de amor que é esse documentário da Bárbara, a dedicação dela ao seu amante e parceiro, o que ele a ensinou sobre cinema, dramaturgia, e sobre companheirismo, lealdade e verdade, está tudo ali, nesse filme que, já não bastasse o feito de imortalizar um cineasta da dimensão do Babenco, ainda revela uma diretora, criadora e artista extraordinária.

Uma obra que vale muito mais do que a mixórdia horrorosa do momento, mixórdia porca, tosca, que vai passar, não é possível que não passe, porque o que fica é a Bárbara, é o Hector, é o amor, a arte e a poesia. É isso que vale.

Ter visto uma obra potente como essa, na conclusão de um ano perverso como o de 2019, assistir ao Babenco reafirmar a vida, mesmo doente, mesmo exausto e condenado, descobri-lo escondido nos heróis que criou, através do talento de uma mulher que intuiu essas memórias póstumas, tudo isso me deu coragem para enfrentar a torpeza que nos aguarda em 2020.

Na hora de desejar feliz ano novo, lembrarei dos dois, desse estranho casal, e me sentirei alerta e operante, viva, até alguém ouvir o coração dizer: parou.

Férias

A colunista tira férias em janeiro, mas volta em fevereiro para cobrir o pré-Carnaval. Em março, o ano começa. Em outubro tem eleição e, aí, lá vem o “Jingle Bells”.

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