Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Homero aprendeu a escrever na 'Ilíada' para conceber a 'Odisseia'

Findos os cânones, retirei da estante uma velha edição de Juliano, de Gore Vidal, que há muito desejava ler

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Estávamos na cozinha e a conversa enveredou pela Bíblia. M. mostrou interesse em ler “A Ascensão e Queda de Adão e Eva”, de Stephen Greenblatt, depois de eu citar passagens do livro.

O Gênesis fora escrito no século 5º a.C., após o cativeiro na Babilônia, disse, fruto da necessidade de fundar uma mitologia que fizesse frente ao panteão de Marduk, Apsu e Tiamat. Era forçoso que o Deus onipresente de Abraão fosse autor da Criação.

M. arregalou os olhos ao descobrir que Noé se chamava Utnapishtim no poema épico “Gilgamesh”, datado de 2.000 anos antes de Cristo. Uma epopeia em cujas páginas já rastejava a traiçoeira serpente, verdejavam jardins com plantas da vida eterna e Enkidu passeava nu, um homem insuflado do barro.

Ilustração de uma mulher de costas com um copo na mão e três livros ao seu lado: Odisseia de Homero, Ilíada de Homero e Ascensão e queda de Adão e Eva de Stephen Greenblatt. A mulher olha uma cena que está no fundo da imagem depois de uma árvore cheia de maçãs, a parte da composição em que está a mulher é toda cinza e a outra parte toda colorida. Na parte em cores, há uma mulher e um homem sentados de mãos dadas um de frente para o outro na grama.
Marta Mello/Folhapress

M. é uma mulher inteligente, deixou a Bahia jovem, criou sozinha uma filha, hoje formada em turismo. Além do trabalho de doméstica, M. tem uma loja de roupas em Campo Grande. Ela segue o noticiário e votou em Bolsonaro, mas não pretende repetir o feito. É evangélica, mas não dogmática, o que me fez lhe dar o livro de Greenblatt.

Nos quatro meses entre a conversa da cozinha e a hora em que escrevo, deu-se a quarentena.

A filha e o marido perderam o emprego e a queda no faturamento talvez a obrigue a fechar a loja. Nesse período, me mudei para a serra e, entre a horta e o trabalho a distância, me dediquei à leitura pagã da “Ilíada” e da “Odisseia”.

Um amigo muito culto diz que Homero aprendeu a escrever na “Ilíada” para, na sequência, conceber a irretocável “Odisseia”. Entendo, mas não sei se concordo.

A “Odisseia” tem uma estrutura primorosa, moderna, que alterna passado e presente para revelar, aos poucos, os 20 anos passados entre o fim da guerra e o retorno de Ulisses a Ítaca. Vencendo a adversidade, desafiando toda e qualquer deidade, o homem astuto recupera as posses e a família. A Ulisses é dado o direito a um final feliz.

A “Ilíada” não. A “Ilíada” é torta, caótica, possessa e delirante. Talvez a tradução de Haroldo de Campos tenha contribuído para a sensação de bestialidade poética que experimentei, mas acho que a diferença emana da própria obra.

Ao contrário da “Odisseia”, nela se sente a presença majestosa, irascível dos deuses: a soberba, o insaciável desejo e a violência com que se apoderam da razão dos homens. Uma voracidade diversa da feminilidade familiar do reconto de Ulisses.

A bruta e máscula “Ilíada” termina trágica, com o enterro de Heitor, antecedido pelo encontro entre rei Príamo e Aquiles, o assassino do príncipe. Ciente de que morrerá em Troia, um oráculo previra, o chefe dos mirmidões concede ao pai o direito de recolher o cadáver do filho, a fim de
sepultá-lo com as honras devidas na cidade sitiada.

“Aflitos ambos, deixemos que serene a dor no coração, pois o pranto glacial não deriva nenhum proveito. Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mortais: um viver agoniado, sendo os numes incólumes.” A guerra e a devoção não garantem aos homens alívio algum.

Findos os cânones, retirei da estante uma velha edição de “Juliano”, de Gore Vidal, que há muito desejava ler. Juliano foi o último imperador romano a tentar reverter o avanço da crença cristã que, desde a conversão de seu tio, Constantino 1º, se tornara a religião oficial do império.

Assíduo leitor de Homero, Platão, Plotino e Aristóteles, amante dos gregos e iniciado nos mistérios, Juliano sentia aversão pelo primitivo culto dos galileus, uma crença que pretendia subjugar Zeus, Juno, Deméter, Perséfone, Ares, Afrodite, Ártemis, Atena e Hermes à inconsistente Trindade.

E foi assim, apóstata, que me reencontrei com M., meses após o início da quarentena. Toda Olimpo, só me lembrei de Adão e Eva quando ela comentou que o famigerado livro havia revirado de ponta a cabeça tudo o que aprendera até então.

“Tudo o quê”, perguntei.

“Tudo”, ela disse. “Afinal, nós não viemos de Adão e Eva?!”

Olhei para M. sem saber o que argumentar. Não esperava que uma mulher tão acordada para a vida, curiosa e independente, também confundisse mito e realidade.

“Na Bíblia, viemos todos de Adão e Eva, não há o que discutir”, arrisquei cautelosa. “O livro que eu te dei é uma visão histórica das Escrituras.”

“Mas... e você?”, M. insistiu ansiosa. “Acredita em quê?”

“Eu...?” Respondi: “Em Adão, em Eva... e em Darwin”.

Mil e setecentos anos depois, Juliano continuaria perplexo.

PS: Acabo de saber da morte de Aritana Yawalapiti pela Covid-19. Eu o conheci em 1988, durante as filmagens de “Kuarup”, no Xingu. Jamais me esqueci da sua presença sólida e gentil; da sua oca extraordinária e sua tribo delicada. Está tudo errado neste Brasil.

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