Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Búzios é o exemplo vivo, ou morto, da ocupação que Ricardo Salles planeja

Resorts sobre os manguezais, o lucro rápido de uma meia dúzia em troca do prejuízo eterno de milhões, ou seja, terra arrasada

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Eu devia ter uns dez anos quando aceitei passar um feriadão acampada com tios e primos em Búzios. Búzios, na época, ainda era Búzios.

Metemos duas barracas da Mesbla na Kombi do meu pai, junto com a tralha, que incluía uma privada de madeira construída pelo meu avô marceneiro, para que mantivéssemos as comodidades do lar. O acampamento cigano foi erguido no canto de uma João Fernandes ainda selvagem.

Exaustos da viagem, arrochamos a boca de fogão num botijão, a fim de cozinhar o macarrão com Pomarola da janta. Não deu um minuto, o barulho agudo do vazamento resultou num cheiro insuportável de gás. "Vai explodir!", gritou meu tio, enquanto tentava evitar a tragédia.

Passado o susto, engolimos a gororoba, lavando pratos e dentes na espuma da arrebentação. Não lembro o que fizemos com os sacos plásticos das necessidades, ajustados ao trono do meu avô. Temo confessar que os jogamos no mato, como se o mato fosse dar cabo deles.

Eu me lembro, sim, de cair amontoada no quartinho de tela num calor de rachar e de ser acordada por um primo que enchera a cara e acabou vomitando nos pés dos ocupantes da sala do château de náilon.

Assim que o dia raiou, carente de paz e privacidade, inflei o bote de plástico e passei a sexta, o sábado e o domingo a boiar na marola, sem blusa, chapéu ou filtro. Ignorávamos o risco de melanoma naqueles idos de 1975. No caminho de volta, notei o contraste entre o roxo da pele e o branco da marca do biquíni. A queimadura levaria um mês para sarar.

Ilustração usa várias palavras pra descrever a restinga e o mangue
Marta Mello

Trauma de infância, nunca mais acampei e nem senti falta de acampar.

Eu levaria duas décadas para retornar à Armação dos Búzios. Dessa vez, nada de farofa. O pai de um namorado possuía uma casa linda, no centro da Ferradura, cujo jardim terminava num muro sobre a areia. A maré alta engolia a beira-mar e me pareceu estranho que uma praia pública pudesse ser loteada de maneira tão privée.

Pela manhã, despertei com o roncar das lanchas.

Não só a areia da Ferradura fora privatizada, como o espelho d'água liberado para todo o tipo de esportes aquáticos. Banana boats, motos aquáticas e embarcações variadas zanzavam como moscas no plácido oceano, ameaçando banhistas, afugentando peixes e arruinando o que Deus criara.

No apagar das luzes do segundo milênio, os dois penhascos que fecham a entrada da exuberante enseada ainda restavam intactos, mas os grandes resorts já negociavam as encostas recobertas de vegetação nativa, animais rasteiros e ninhos de pássaros.

Eu levaria outros 20 anos para retornar ao Éden de Brigitte Bardot. Foi em setembro, agora, no meu aniversário de 55 anos.

A engarrafada via de mão dupla que dá acesso à península sempre foi horrenda, mas piorou com a idade. O comércio de casas feias quintuplicou o número de restaurantes, supermercados, postos de gasolina e agências de turismo. Um não acabar de néons, reclames e outdoors vendendo o que não mais existe.

Minto.

A praia dos Ossos ainda guarda a memória do antigo encanto. A igrejinha do século 18, protetora dos baleeiros, continua lá, mas o resto foi entregue à especulação imobiliária.

Condomínios inteiros avançam sobre as demais praias. Boates bregas, pistas de minikart e pombais batizados de hotéis, onde antes respiravam dunas. Quase nenhum vestígio da paisagem agreste.

A praia da Tartaruga foi tomada por botecões estilo favela. Enormes barracas de compensado e concreto, com mesas que se alastram em direção ao mar. Um festival de latas de cerveja, garrafas, copos de plástico e guimbas meio fumadas.

Búzios é o exemplo vivo, ou morto, da ocupação predatória que Ricardo Salles, o antiministro do Meio Ambiente, planeja para o que sobrou do Brasil.

Resorts com piscinas de cloro sobre os manguezais que alimentam a vida marinha e a nossa. O lucro rápido de uma meia dúzia, em troca do prejuízo eterno de milhões.

Extrativismo. Queima de riquezas irrecuperáveis. Terra arrasada.

Minha família jamais deveria ter acampado em João Fernandes; o pai do meu namorado não poderia ter fincado sua casa na areia da Ferradura e nem as malocas-bares destruído a beleza da Tartaruga.

Você pode desculpar os adultos da década de 1970 por não besuntarem as crianças com filtro solar. E perdoar a falta de consciência ecológica e planejamento urbanístico dos anos 1980 e até 1990.

Em 2020, é crime! É crime, Ricardo Salles.

Minha solidariedade à juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que tentou barrar essa boiada.

Pena que durou pouco.

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