Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Virei leitora da Folha por causa da Ilustrada e nela celebro o centenário

A arte patina nesse início de milênio, e os cadernos de cultura emagrecem e fenecem espelhando a crise

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A arte patina nesse início de milênio conturbado. Os jornais espelham a crise, com cadernos de cultura que emagrecem e fenecem. Eu me tornei leitora da Folha por causa da Ilustrada e, através dela, celebro o centenário do jornal.

Nos anos 1980, depois de duas décadas de censura e isolamento, o país ensaiava uma encabulada abertura, entre comícios e derrotas das Diretas Já e o retorno dos exilados.

No Rio de Janeiro, o Circo Voador aportava no Arpoador, a Blitz estourava nas rádios, o besteirol nas ribaltas e a Geração 80 no Parque Laje. Fernando Gabeira abraçava a Lagoa. A democracia adolescente aplaudia o pôr do sol no Dois Irmãos.

palavras "extrema-direita", "desilusão", "democracia" e "redes insociais" escritas uma abaixo da outra em letras pretas e arredondadas
Marta Mello/Folhapress

Convidada pela Tatu Filmes para fazer “A Marvada Carne”, acabei na Vila Madalena, berço das produtoras cinematográficas emergentes de então. Versão caipira uspiana do Baixo Leblon, a Vila ainda não personificava o abismo entre Rio e São Paulo, que se consumaria com a falência do balneário.
Eu só descobriria outra Pauliceia, para a qual não havia paralelo na Guanabara, ao adentrar os salões da casa do saudoso artista Fernando Zarif.

No amplo apartamento do Itaim circulavam os Titãs, Zé Resende, Jac Leirner, Mag e Lenora de Barros; era um misto de Adoniran Barbosa com os Ramones, de Baudelaire com irmãos Campos, do Sex Pistols com Tonico e Tinoco.

Em meio aos convivas, destacava-se o mais que ferino Pepe Escobar. Neto new wave do Paulo Francis, Pepe intimidava. Cultíssimo, ele era parte da nova geração de enfants terribles da Redação da Folha e encarnava, a meu ver, o próprio jornal.

Mais tarde, essa carioca recém-chegada conheceria os alienígenas Matinas Suzuki, Marcelo Coelho e Nelson de Sá, que não se enquadravam no perfil do Pepe, mas possuíam o DNA aguerrido do diário antenado do Tietê.

Eu só seria apresentada a Otavio Frias Filho em 1992, ele, sim, a alma da Folha. Erudito, irônico e curioso, o Otavio me era indecifrável. Dramaturgo, o seu interesse pelo palco pautou o suplemento cultural do jornal, que dedicou ao teatro análises, matérias e primeiras páginas. A Ilustrada ajudou a transformar o teatro num objeto de desejo da minha geração.

Havia um travo pós-punk naquela São Paulo de fim de século. No crivo de muitos dos colaboradores da Ilustrada, não sobrava espaço para os herdeiros odara do banquinho e violão.

São as impressões de uma ipanemense mal desmamada que entrou numa ponte aérea no aterro e aterrissou no Masp. O Caderno B do Jornal do Brasil e o Segundo Caderno d’O Globo ainda exibiam a elegância palaciana, à la Zózimo, da ex-capital. A Ilustrada era a pá de cal.

Da bossa nova, só sobrava João Gilberto. Da tropicália, Tom Zé. Fora o Ernesto Varela de Tas e Meirelles, a televisão não era nem sequer considerada. No cinema, combatia-se a supremacia carioca dos editais da Embrafilme; no teatro, alternavam-se nas manchetes José Celso, Antunes Filho e Gerald Thomas. O “Clara Crocodilo” do Arrigo Barnabé encarnava o futuro.

Para o bem e para o mal, a Ilustrada representava um desafio algo assustador para os que se aventuravam na profissão artística. Porque o espírito cosmopolita, vanguardista, que pretendia acordar a sociedade do sono de 20 anos, vez ou outra, perdia a mão.

“Regina Casé representa as panelinhas mais nefastas da cultura brasileira. Este país não tem jeito enquanto não derem um tiro na Regina Casé”, escreveu André Forastieri em 1995, na coluna
Ondas Curtas do Folhateen.

Matinas Suzuki, então editor, defenestrou o sujeito. O Folhateen não era a Ilustrada, mas o ataque à Regina e a menção às panelinhas confirmam o desejo da Redação de acabar com a hegemonia cultural da Rede Globo, da Embrafilme, do Asdrúbal e da MPB. Havia um instinto demolidor na Ilustrada da minha mocidade, um quê de revolução cultural.

Trinta anos se passaram e Anitta domina a raia sete das redes insociais, que ameaçam substituir a imprensa. Do capital artístico da ex-Cidade Maravilhosa, restou o Projac, espremido entre as milícias de Jacarepaguá e os estúdios da Record.

Na Ilustrada, nos tornamos reféns da desilusão democrática, discutindo obsessivamente a ascensão da extrema direita, ao som do sertanejo universitário. O agronegócio deslocou o eixo econômico ainda mais para o interior e, com ele, as predileções políticas e estéticas.

Sinto falta da Ilustrada, dos erros e acertos da Ilustrada. Sinto falta até de apanhar da Ilustrada. Mas não é culpa do jornal, é da hora mesmo.

A arte saiu da pauta.

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