Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Frente ampla sem roteiro plausível não passa de um grande psicodrama

O dia 12 de setembro mostra que não há rua sem o campo da esquerda, ou sem a união de um ou mais líderes carismáticos

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Antes do fatídico Sete de Setembro, eu acreditava que tudo iria acabar em conchavo. Jair esticaria a corda, mas passaria a faixa em troca do perdão da família, mirando a campanha para a presidência de algum 00 em 2026.

Dividi a crença com uma roda de amigos informados. Uns reconheceram no conchavo a velha saída à brasileira, mas o filósofo rebateu seco. “Não haverá conchavo porque não haverá eleição. Ou se organiza uma frente ampla pelo impeachment, ou lá se foi a democracia.” A terça-feira golpista comprovou a tese.

A horda de iludidos nas ruas, menos gente do que se esperava, mas, ainda assim, muita gente com a camiseta da CBF a chamar urubu de meu louro, a abraçar o Queiroz e avançar sobre a praça dos Três Poderes.

Seguiu-se o frenesi de memes e postagens. Adnet gênio, Zé Trovão foragido no México, Heleno delirante num vídeo digno do “Zorra Total”, a ocupação comemorando o estado de sítio que não aconteceu e a greve sem controle de caminhoneiros.

Seria aquela a vitória de Pirro de Bolsonaro? A besta-fera atravessara o Rubicão e, quem sabe, até o centrão lhe viraria as costas? Era a deixa para a frente ampla. Ir ou não ir à rua com o MBL? Essa era a questão.

Foi quando Michel Temer, o do “tem que manter isso aí...”, abriu as asas em São Paulo e se materializou no Alvorada com a carta de arrego na mão. O conchavo. A Bolsa subiu, o dólar caiu, Lira desconversou, Aras fez que não viu e se empurrou, mais uma vez, o caos com a barriga.

Em conversa com Vinicius Torres Freire, um deputado não identificado afirmou que o impeachment é “coisa de artista”. Foi a primeira categoria que lhe ocorreu para dar exemplo de nulidade. “O impeachment é coisa de artista”, disse, da elite, dos jornais, da minoria parlamentar e de meia dúzia de empresários gatos pingados que não têm ideia da “confusão que esse povo do Bolsonaro vai arrumar na rua”.

È vero. O agronegócio está com o coiso, os garimpeiro e grileiros, além das viúvas da ditadura e da classe média oxigenada. Derrotá-lo nas urnas inibiria teorias conspiratórias, a insurgência de seguidores armados e das forças de segurança que o apoiam. Mas o filósofo lembra que não existe, no horizonte do monstro, alternativa que não a do golpe.

Contra a argumentação do deputado pesa a péssima avaliação do atual desgoverno, de 51% da população, e o desejo, expresso nos panelaços de abreviar o mandato do pior presidente da história, seja pela renúncia ou pelo impeachment, ambos improváveis.

Mas os 51% não formam a unidade cega e coesa dos restantes. O dia 12 de setembro mostra que não há rua sem o campo da esquerda, sem as comunidades de base, sem o financiamento de empresários, partidos e sem a união de um ou mais líderes carismáticos. Não há.

O restante segue um messias e aderiu a um enredo de fake news consistente, escrito, não sei, por Steve Bannon e Olavo de Carvalho, baseado na salvação da família, da moral, da justiça e de Deus. Os outros 51% seguem em busca de um autor.

E, na impotência de figurante desse coro de vozes inconciliáveis, tirei “Seis Personagens à Procura de um Autor”, de Luigi Pirandello, da estante. Coisa de artista. Na peça, um ensaio é interrompido pela aparição de seis personagens abandonados pelo dramaturgo que os criou.

Os seis esperneiam mágoas, rachas e crises familiares agudas. Eles choram, gritam e se acusam mutuamente, sem dar sentido lógico à emoção bruta que carregam, já que a peça da qual fariam parte jamais foi escrita. Falta o autor.

Desenho mostra a frase "frente ampla", com letras dispostas de maneira criativa, em meio a um cenário bem colorido
Publicada em 15 de setembro de 2021 - Marta Mello

A ENTEADA – Eu quero representar o meu drama! O meu!

O DIRETOR – Oh, enfim, o seu! Não é somente o seu, desculpe! É também o dos outros! O dele, o da sua mãe! Não é possível que uma personagem venha, assim, demasiada à frente, e se sobreponha às demais, invadindo a cena. É preciso mantê-las todas num quadro harmonioso e representar o que é representável! Eu também sei que cada qual tem toda uma vida dentro de si e que gostaria de exteriorizá-la. Mas o difícil é exatamente isto: exteriorizar só aquilo que é necessário em relação aos demais! [...] Ah! Que cômodo seria, se cada personagem pudesse, num belo monólogo, ou... sem mais nem menos... numa conferência, vir despejar, diante do público, tudo o que lhe ferve por dentro! Precisa conter-se, em seu próprio interesse, acredite, porque pode até provocar má impressão, advirto-a, toda essa fúria dilacerante, essa aversão exasperada!

Frente ampla sem um roteiro plausível não é frente ampla, é psicodrama. E suspeito que não há roteiro plausível sem que Lula diga para que lado vai.

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